segunda-feira, 18 de maio de 2009

IDENTIDADES, PATRIARCALISMOS / PATRIMONIALISMOS (EM CRISE, OU NÃO), MASCULINIDADES E O PENSAR.


(Continuação e complemento do exercício de texto / capítulo anterior)

Resumo dos sub-temas desenvolvidos ao longo deste texto:

- Filosofia e Ciência

– Arte, Cultura, Indústria Cultural, Humor

– Performances / Transperformances / Estilos: profissionalmente artísticos, e cotidianos

***

"Como (...) escreveu João dos Santos, ‘histórias sem sonho são narrativas sem murmúrios nem vogais, portanto sem os sons da dor e do prazer’”. (Sampaio, Daniel; Jornal Público, Revista Pública, Portugal, de 1 de Fevereiro de 2009, sobre o Plano Nacional de Leitura - Portugal.)

Tenho falado aqui hipercomplexamente (o que é, creio, uma inevitabilidade pós-moderna) de Mal Estar, reflexão, escolhas, ética, estética, sexo, gênero, masculinidades, instituições, vida (esfera) íntima e vida (esfera) pública, e – claro – mediações plausíveis entre esses ingredientes.

Logo, falo de uma rede de temas amparada pela filosofia (e o quê não o seria?).


Uma FILOSOFIA que depende de manter a abertura a novas questões para existir e resistir; que já não precisa mais se separar de corpos e sexualidades, por exemplo.

...”Não apenas ações e relacionamentos exprimem nosso ser sexual, os quais não podemos descartar, como também a sexualidade por sua vez encarna o drama de toda a nossa vida pessoal. Nosso ser sexual não pode ser trancado num compartimento de nossa existência, mas reflete atitudes assumidas em outras dimensões de nossas vidas. Desse ponto de vista, tematizar a significação erótica da filosofia, não reduz a filosofia à sexualidade tanto quanto à existência. Ao contrário, a filosofia é entendida como a expressão e interpretação da experiência humana, que é inexoravelmente a experiência de seres sexuais”... Ao argumentar por uma orientação que aceite a atividade filosófica como se originando da mesma fonte que os sentimentos eróticos, deve-se admitir a existência erótica não como um fato estritamente biológico, natural ou como um domínio em si impenetrável à consciência. Ao contrário, a sexualidade deve ser encarada como um tema da existência, que impregna as múltiplas relações de nossas vidas, e que por sua vez reflete outros interesses ‘não eróticos‘“... (Schott, R.; 1996, p. 226 e 227; sublinhados meus).

Pensar, conceituar, só acontecem, e só se exibem, sob o amparo da filosofia.

Comungo com as aspas que a filósofa e feminista Robin May Schott coloca em “não eróticos”, em seu estudo de Kant.

Em tempo: O quanto o Pensamento ganhou de abrangência e maleabilidade a partir do momento em que a mulher começou a emergir da Academia a partir de 1930?... É uma boa pergunta, que merece um OUTRO texto só para refleti-la...


EROS: que experiência de humanização poderia ser “não erótica”? Não erótica significaria algo humano sem a vida da Vida. Eu não conseguiria listar sequer uma...

TANATOS: Edgar Morin (em 1976), lembrando que Bacon achava curioso que as performáticas pompas à morte excedessem o fenômeno da morte em si, lamenta que só estes excessos tenham talvez interessado e alimentado a sociologia durkheimiana em suas teorias sobre a morte, devido à expectativa de Émile Durkheim de separar o individual do social, de explicar o social pelo ‘social em si’, “precisando” que as condutas inspiradas pela morte fossem sociais. Mas, lembra ainda, que os esgares da dor simulada (social) pública, performática, implicam uma emoção de origem (individual) íntima.

Assim, a Filosofia faz um caminho aparentemente óbvio, PRECISANDO estar presente em nosso cotidiano também corporificado, para que o SEGUIR EXISTINDO tenha Sentido, e a BANALIZAÇÃO do SER seja evitada.

Banalização que é da ordem per-vertida (vertida para fora do lugar adequado) de Tânatos: rouba o Sentido do SER, inadequadamente.

Tânatos é (ou está) adequado, quando está posicionado de maneira à (hipercomplexamente) coexistir com Eros, ocupando o lugar de sua referência de inevitabilidade trágica.

Essa ‘alternância de poder’, ou diálogo mediador entre EROS E TÂNATOS também é plausível.

Onde EROS E TANATOS coexistem, existem Filosofia e Vida, elas são plausíveis.

Talvez seja o que os chineses chamaram de Tao: “Tao é, ao mesmo tempo, o caminho, o caminhante e o ato de caminhar“. (Máxima Taoísta).

Os resultados da instalação desse novo estilo de caminhar (seguir transitando, cumprindo o destino de ser mero transeunte em nossa tragicamente demarcada existência) – seria UMA ESTÉTICA?

Já a plausibilidade é o otimismo possível no olhar do transeunte da vida da Vida; temos aí UMA ÉTICA?

É assim que Eros, Tânatos e a Filosofia pairam sobre “a Ética e a Estética plausivelmente casadas” por mediações, que eu “PROPORIA” na pós modernidade, como comentei no texto anterior, se outros autores já o não tivessem feito há MUITO tempo atrás, sem aguardar pós-modernidade alguma (talvez semeando-a).


Sócrates morreu porque reivindicava que uma intralocução individual precedesse as decisões coletivas da Polis. Além disso, afirmava que a pura Retórica, por mais qualidade que pudesse ter, não bastava para a qualificação de nossas humanidades: a manutenção do “Estado de Espanto”, característico da singularidade individual, (e próximo do “Estado Poético”) era tão necessário quanto a Retórica; dava Sentido a ela mesma e a tudo mais, pela mediação entre as duas.

Kant, segundo Schiller em sua “A EDUCAÇÃO ESTÉTICA DO HOMEM”, não colocava o BELO no objeto, mas sim nas reflexões que ele suscitava no espectador.

Já o próprio Schiller, nesse mesmo lindíssimo trabalho seu, mostra um homem estético que também é virtuoso, sob o imperativo de aproximar a idéia de dignidade da idéia de felicidade. Perseguia um “terceiro elemento” que ligasse Razão e Sensibilidade, possibilitando essa aproximação (ou mediação).

Hans Georg Gadamer fala da Arte como JOGO, SÍMBOLO e FESTA: faz isso, pois a vê como uma experiência antropológica (sem finalidade, claro!). Três elementos mais uma vez dialógicos. Hans-Thies Lehman escreve atualmente sobre o teatro pós-dramático, o teatro da pós-Modernidade. Sobre seu trabalho sobre esse teatro contemporâneo, diz Luiz Arthur Nunes:

“....Muitos autores da vanguarda contemporânea escrevem obras em que as palavras não funcionam como diálogo entre personagens - as quais muitas vezes nem existem mais. A palavra se afirma como uma entidade autônoma. A camada de oralidade instaura-se na cena como uma corporeidade poética e sensual de alta voltagem”... “A decisão de Hans-Thies Lehmann foi de, na sua obra, deter-se fundamentalmente sobre as configurações estéticas do teatro pós-dramático, mas adverte-nos que uma análise estética envolve necessariamente questões de ordem ética, moral, política e filosófica.”... (Nunes, L.A. texto no site da editora Cosac Naify; negritos meus).

Há busca de mediações onde quer que se olhe...


A CIÊNCIA, atual “comandante da alquimia” do que conhecemos - por exemplo - sobre nosso espaço e nosso tempo, também anda buscando a mediações.

...”a maior parte dos cientistas tem estado muito ocupada com o desenvolvimento de novas teorias que descrevam ‘o que’ é o universo para se fazer a pergunta ‘por quê‘. Por outro lado, as pessoas cuja tarefa é fazer a pergunta ‘por quê´, os filósofos, não são capazes de se manter atualizados com as mais avançadas teorias científicas. No século XVIII os filósofos consideravam todo o conhecimento humano, incluindo a ciência, como campo de seu domínio e discutiam questões como a possibilidade de o universo ter tido um começo. Entretanto, nos séculos XIX e XX a ciência se tornou muito técnica e matemática para os filósofos ou qualquer outra pessoa além dos poucos especialistas”... (Hawking S.W; 1989, p. 237 e 238; negritos meus).

Na física isto aparece na construção de uma única teoria quântica da gravidade, que possa elaborar as duas grandes teorias vigentes: a da relatividade, que diz respeito ao macro, a tudo que é vasto, e a da mecânica quântica, que diz respeito ao micro, ao que é extraordinariamente minúsculo.

Assim, podemos dizer que todos os segmentos da própria vida da Vida estão, no momento (ou como sempre?), recebendo olhar similarmente direcionado de angústia humana: lembro que a leitura mais elementar do sentimento de angústia é a sensação de se sentir dividido, entre quaisquer dualidades.

No caso, “ou privilegio o micro”, “ou privilegio o macro”...

Agora isso parece representado pelo olhar à “dualidade micro/macro” (que posso comparar com a “dualidade íntimo/público”), onde o aumento da carga ansiógena também aparece, devido à ciência (isto é, estar ciente, sem possibilidade de retorno à ignorância!): aquilo que era vivido como dualidade, na verdade não é mais só isso, também pode ser uma e íntegra terceira coisa: lembro que a leitura mais elementar de ansiedade é a sensação de se sentir especialmente pressionado por exigências, mesmo que vindas ‘de dentro’.

O que existe, a terceira coisa, é a “hipercomplexidade micro/macro”, que demanda, (pressionando), como dizem os físicos em pessoa, inclusive, (nova?) teoria específica.

Ainda segundo Steve Hawking (em 1989), quando filósofos, cientistas, artistas e leigos puderem (juntos) fazer parte da discussão sobre por que nós e o universo existimos, caso encontremos a resposta, teremos o triunfo definitivo da razão humana: “teremos atingido o conhecimento da mente de ‘Deus”...


Teremos também Discursos e Práticas ligados e equilibrados por Responsabilidades.

Teremos curiosidades mantidas por tanto tempo aparentemente diversas ou duais (“Por quê? Qual o Sentido?” de um lado, e “Como fazer? Como fazer melhor? Como funciona?”, do outro), somados ou mesclados: mediados dialogicamente.

Antigas (eternas?) perguntas, plausivelmente religadas por renovadas responsabilidades dos que se dizem preocupados com o Pensar (o que deveria ser um direito estimulado em todos): “Eu que me responsabilizava por perguntar ‘Qual o Sentido?’ posso me responsabilizar também pela pergunta ‘Como funciona?’”. Ou, “Eu que me responsabilizava por perguntar ‘Como fazer ainda melhor?’, posso me responsabilizar também por ‘Para quê tudo isso?’”.


O físico F. Capra, (em 1983), e o Professor Marcelo Gleiser, (este, um brasileiro que leciona física e astronomia na universidade Dartmouth College, em entrevista à Revista Veja em 14 de dezembro de 1994, páginas 8 e 10), lembram que no mito hindu do Deus Shiva, ele cria o mundo enquanto dança, e quando ele pára de dançar o universo é destruído, num processo ritmado; contam eles que, até conhecermos o modelo do Big Bang, mais aceito hoje em dia, existia um modelo científico do universo que descrevia esse mesmo processo rítmico de criação e de desintegração, muito popular e respeitado.

...”o modelo do Big Bang...tem seu equivalente aos mitos religiosos.....não estamos descobrindo a pólvora, mas passeando com a ciência em áreas já visitadas pela religião”... (Gleiser, M.; 1994, p.8).

Em sua entrevista, o Professor Marcelo acrescenta que, através de outro mito hindu, pode - se dizer que - definitivamente - não há como compreender a origem do universo, pois não há como explicar com a razão algo que criou a razão:

...”Como vamos usar o pensamento para compreender algo que criou o pensamento? É como se um peixe dentro do oceano quisesse escutar o oceano como um todo”...(Gleiser, M.; 1994 , p.10).

Devido a este estilo adotado em seus discursos, ou em livros e aulas, tanto F. Capra quanto Professor Marcelo Gleiser têm sido chamados de “físicos e poetas”; belo exemplo de saberes mediados...

O meritório e justo sucesso que fazem parece confirmar (mesmo no aparentemente diverso universo da ciência) a proposta relembrada no universo da Sociologia por Edgar Morin citada no texto anterior, sobre fugir da trivialidade através do olhar poético, de viver poeticamente, e – claro – o benefício de mantermos alerta o “estado de espanto” socrático sobre nossos postulados teórico-retóricos.


Para mordida de cobra, veneno da própria cobra: para a inevitável hipercomplexidade contemporânea, é recomendável a ousadia de uma convergência hipercomplexa de olhares...

Reflitamos, pois:

Novos olhares para pensar e caminhar exigem novas reflexões sobre muitas coisas...

um GERÚNDIO (tão desqualificado e mal-afamado pelos call-centers) QUE VALE A PENA.

Numa tentativa de definir ainda melhor o que até agora chamamos de “gerúndio que vale a pena”, recorremos a Gaston Bachelard quanto à experiência do tempo.

Segundo ele, se o tempo parece mais curto quando está ocupado, isso deveria trazer um conceito essencial: a vantagem de se falar em ‘riqueza’ e ‘densidade’ mais que de ‘duração’, pois - com estes conceitos - apreciaríamos essas horas regulares e calmas com

...”esforços bem ritmados, que dão a impressão do tempo normal” (Bachelard, G.; 1936/1988, p. 41).

Com uma ‘duração’ (mestra da Morte) tornada suportável através de ‘riqueza e densidade’, temos não só a fruição do tempo gerúndico, mas também um evidente gerúndio eroticamente poético, que rompe com a tanática trivialidade: SENDO.

Outra reflexão: precisamos também definir, para pensar e caminhar, o que consideraríamos uma per-versão da impecabilidade hiperacional.

Quando o Discurso (não só a política, mas também a ciência se esmerou nisso até pouco tempo) se especializa no culto da impecabilidade, a ponto de se auto-proclamar “verdadeiro”, ele se encapsula e seqüestra o Vínculo: a possibilidade de realmente chegar ao Outro.

Esse tipo de ciência serve a quem? A quantos? Quantos podem interferir numa ciência assim apresentada? Trivialidade e impecabilidade acabam se igualando: ambas anulam a presença do Outro.

Tanto a turbulência quanto a agressividade propostas por G. Bachelard (citadas no texto aqui publicado anteriormente), são as mesmas para as quais tento chamar a atenção: o resgate do Vínculo com a Alteridade através de uma “racionalidade sensível”, de uma racionalidade (apolínea) disposta a “se sujar” (dionisiacamente) de sensibilidade, para poder chegar ao Outro e acolhê-lo (artemisiamente). Quem leu o texto anterior compreendeu as referências mitológicas que fiz aqui.


Quando a Prática é fraudulenta (impecável “para inglês ver”, e perniciosa na essência), costuma acompanhar “muito bem” o Discurso “que se julga verdadeiro” (e impecável); deixa a suposta impecabilidade guardada nele, no Discurso, mas o ignora, seguindo rumo a desmenti-lo: seqüestra e encapsula a possibilidade de Vínculo, da mesma maneira que o “Discurso Verdadeiro” o faz, acompanhando-o com sua fraude.

Falar de ausência de financiamento possível para sanar a fome, a saúde ou a Paz, exibindo gordos e freqüentes investimentos orçamentários em ciência bélica, me parece um exemplo concreto o suficiente, não só do que chamo de seqüestro de vínculo e encapsulamento, mas inclusive de ausência de Responsabilidade.

Responsabilidade que seria o Terceiro Elemento que poderia estabelecer mediações e dar “liga” e equilíbrio a discursos e práticas...


O “Sucesso aparente” não satisfaz mais a uma boa parcela dos seres em busca de humanização, que – feliz e gradualmente - prefere se direcionar para a dedicação à Alteridade.

No universo da ciência pequenos exemplos banais o exemplificam, como o retorno da figura do médico de família (que “dribla” a quase onipresente figura do “especialista”), a revalorização das parteiras, a revitalização da pesquisa fitoterápica e o estudo acadêmico da medicina popular, a tentativa de popularização o menos vulgar ou populista possível do discurso científico (na Rede, em publicações, vídeos, programas televisivos, etc.) para ampliar a quantidade de público com acesso às novas “descobertas” ou propostas, os grupos de estudo de física quântica que se multiplicam, o estímulo dos segmentos minimamente honestos do Terceiro Setor às iniciativas populares de urbanização (que envolvem, em programas de cidadania, iniciativas referentes à higiene, reciclagem, pesquisas de acessíveis técnicas agrícolas, etc.), entre outros.

Dedicar-se com Discurso e Prática equilibrados por Responsabilidade a novos olhares é duro, difícil, exaustivo: não é para “homens moles” nem “gente geleia”.

Edson de Sousa, um psicanalista gaucho estudioso das masculinidades pontua-o direcionando o debate para “nosso” assunto, pois no texto abaixo, se refere objetivamente a abordagem psicanalítica do contingente masculino:

“...Que campos da experiência humana poderiam recuperar a potência de um sonho (uma utopia) em que os sujeitos não precisassem destruir o outro para terem a sensação de existência? Esse me parece ser o compromisso ético da psicanálise diante dos novos desafios, que exigem de todos nós um esforço de compreensão e de implicação”...(de Sousa, E. L. A.; 2005. O homem sem qualidades, em Masculinidades em crise; pág. 151).


É uma atitude afirmativa (logo assertiva, eroticamente agressiva) exposta à turbulência constante, como o que se constata prosaicamente ao (por exemplo) observar cada vez mais (tanto) mulheres maternando ou homens paternando bebês recém nascidos, estimulados por iniciativas como as citadas acima, que emergem de uma racionalidade sensível, isto é, ações conseqüentes de uma racionalidade já mediada pela sensibilidade, que já dialoga com a sensibilidade.

Aliás, é possível que a qualidade humanitária desses novos seres assim cuidados seja melhor, já que tenderá a ser melhor a sua própria possibilidade de aprender a se cuidar, e a reproduzir o bem cuidar de Outro no futuro, melhorando a qualidade civilizatória de todos nós.

Qualidade civilizatória, aliás, que costuma designar uma situação humana que dá maior continência à Arte propriamente dita; é: ARTE com maiúsculas...


Para desvendar como vemos o universo (inclusive) estético transitado pelo homem Pós Moderno, para discutir um contingente humano (especialmente o masculino) que parece “carregar Apolo no bolso e Dionísio no coração” sem ter (mais) a consciência do significado (mitológico? ritualístico? semiológico?) de nenhum dos dois, aparentemente perdida a consciência do valor desta ‘divina’ dupla “carga ancestral” no processo de construção de sua (aparentemente) nebulosa e encapsulada subjetividade/intimidade (como vimos no texto anterior), precisamos começar resumindo algumas definições dos conceitos e imagens que usamos até agora (ou vamos ainda usar) sobre o assunto.

Não esqueçamos também o casamento (diálogo, mediação) entre ética e estética ao qual nos referimos até agora.


Uma coisa é ARTE; pensemos um pouquinho sobre ela.

Sobre as obras de José Rezende, exibidas de 16 de dezembro de 1980 a 31 de janeiro de 1981, no Espaço Arte Brasileira Contemporânea no Rio de Janeiro, conclui Ronaldo Brito (2001), com ar de definição que vai além da intenção imediata:

...Nelas estão retidas, até a saturação, as marcas decisivas da revolução moderna. A essas marcas, entretanto, o trabalho aplica a inteligência de uma economia ao mesmo tempo rigorosa e liberatória - apresenta as informações que tornaram possível sua existência mas, a golpes de transformação, aparece outro e singular - , pura interrogação no presente e do presente. A força desse ‘agora’ nos atrai para essas coisas sem nome e nos prende na rede de suas inquietações. Ali experimentamos ‘momentos de arte’, essa certeza estranha de não saber quem somos”... (Brito, R..; 2001, p. 86) .

Em “Arte, Sociedade e Estética”, T. W. Adorno (1970) abre sua Teoria Estética lembrando que a partir do momento em que a modernidade se instala, a Arte deixa de ser mimética.

Se não reproduz mais o real, já perde aí uma parte de evidência; se perde o real, perde o caráter de evidência e de existência. Em compensação, ganha possibilidades que nunca teve.

Para não “se explicar”, a Arte reivindica sua autonomia.

O quê a impulsiona a isso?

Luta ela para instalar o real, como a ciência, tornando - se “ciência por absorção”?

O que ela seria se não fizesse isso?

Uma religião?

A Arte opta por ser cadáver dela mesma para sobreviver autônoma, querendo, preferindo, ser Um Saber.

A Arte deixa de “ser simplesmente”; abandona sua ingenuidade, perde o direito a ela, (sem abrir mão de um certo “véu”, de uma certa “cegueira”) , e passa a ser “A Questão da Arte” : tem que passar a trazer consigo sua negação, a “não Arte”, para evitar o risco de ser dissolvida pelo empírico, sem precisar de um referencial metafísico.

A dimensão do significado do século começa na primeira guerra.

No dadaísmo, a primeira coisa contra a Arte é ser “contra” ela mesma (ou “contra” o que ela era até então) quando a guerra expõe o mundo a esse limite máximo.

Como se não bastasse, outros momentos semelhantes vêm em seguida: a bomba atômica (o homem mexe diretamente com o átomo), somada à ida à Lua (marcando o fim do mundo sublunar, o que poderia ser considerado o “fim de Aristóteles”), somada à engenharia genética que é também deflagrada, etc.

Como são elaborados os “traumas humanos”, herança de cada um destes momentos?

Por exemplo: você sabe que vai à Lua (que pode ir, afinal!), e tem a impressão de que “não acontece nada na terra”, apesar disso; como elaborá-lo?

Como o ser em busca de humanização responde a isso?

Em 1957, saudavelmente assombrada pelo impacto do primeiro satélite, Hannah Arendt assinala em sua obra, lembrando as palavras gravadas vinte anos antes no obelisco fúnebre de um cientista russo, (´A humanidade não permanecerá para sempre presa à Terra’), que:

...embora os cristãos tenham chamado esta terra de ´vale de lágrimas´ e os filósofos tenham visto o próprio corpo do homem como a prisão da mente e da alma, ninguém na história da humanidade jamais havia concebido a terra como prisão para o corpo dos homens nem demonstrado tanto desejo de ir, literalmente, daqui `a Lua. Devem a emancipação e a secularização da era moderna, que tiveram início com um afastamento, não necessariamente de Deus, mas de um Deus que era o Pai dos homens no céu, terminar com um repúdio ainda mais funesto de uma Terra que era a Mãe de todos os seres vivos sob um firmamento?...”(Arendt, H.1958/2005, p.10).

A reação da Arte (Arte de seres em busca de humanização) diante desses “traumas” é se (re)instituir, reivindicar autonomia, dizendo que “é, porque sabe o que é”: um problema; uma QUESTÃO.

Paradoxal e contraditoriamente, se torna uma “liberdade particular”: afinal liberdade (no caso a do ARTISTA na hora de criar, não mais reproduzindo o “mundo real” mimeticamente) é um conceito absoluto, e não posso ser livre num mundo que não o é; mas a Arte decreta isso para si.

É necessário que se mantenha uma prudente distância entre ARTE (sua face filosófica, ou herdada da filosofia que recebeu), e as OBRAS DE ARTE (sua face materialista, “esta ou aquela” obra).

T. W. Adorno (1970) lembra também que Walter Benjamim nos coloca diante do conceito de “constelações”, sem remissão ao passado.

Como a Arte não tem teleologia temporal, não se define; é, a cada momento, uma certa constelação: tem o seu conceito na constelação de momentos que se transformam historicamente, o que a torna indefinível: isso que parece “movimento filosófico da Arte” é sintoma de sua relação consigo mesma, a tensão da Arte com seu passado, que foge do formalismo da definição convencional.

T. W. Adorno (1970) acrescenta que Hegel, ao falar de “morte da Arte”, não viu que sua “vida” e sua “morte” não se passam no seu conteúdo, mas na sua própria efemeridade; é ESTA que permanece; o conteúdo pode ser a própria efemeridade:

...”Som algum teme o silêncio que o extingue.”... (John Cage; 1985, p.98).

Assim, a Arte não tem “finalidade” (não deve nem pode ter!), mas o seu LUGAR (na sociedade?) é o de recuperar o intervalo entre o mundo instituído como lógico, e o Nada (o que nos remeteria a Heidegger e sua fabulosa pergunta: - “Porque o Ente e não antes o Nada?”, e/ ou a Merleau Ponti e seu “miasma”, o momento em que a coisa não foi domesticada pelo nome, mas já não é mais o nada), nos arrebatando “ao não saber quem somos”, como tão bem descreve Ronaldo Brito alguns parágrafos acima, o que só encontramos neste intervalo “particularmente livre” da Arte.

Recupera nossa capacidade de ESPANTO, sem o qual quaisquer discursos são retórica vazia, e sem o qual o Sentido da vida da Vida não sobrevive.


Arrebatamento pela/para poética este, que Gastón Bachelard (1974), Edgar Morin (2000), Guy Corneau e - já muitos outros - nos propõe(m) como ponte para uma melhor qualidade de vida emocional, mesmo que não estejamos frente um OBRA DE ARTE, mas tornando o impacto com “a Vida da Vida” suficientemente arrebatador para que ele seja uma utopia plausível. Arrebatamento que Zigmunt Bauman (2003) propõe inclusive como possibilidade de “arejamento no pensamento acadêmico”, especialmente na Sociologia.


EM TEMPO: O que alguns chamariam de “Arte engajada” é um absurdo; não há como transformar o não artístico em artístico: ou o que acontece é Arte, ou o que acontece é “engajamento”...


ARREBATAMENTO? Como reconquistá-lo a cada minuto para a existência valer a pena?

Arrebatamento que “um olhar de Kaspar Houser” nos possibilitaria.

O filme sobre esta história verídica, dirigido por Werner Herzog , passou no Brasil com o título de “O Enigma de Kaspar Hauser” . O nome original deste comovente trabalho é “Jeder für sich und Gott gegen alle”, bem mais significativo, significando “Cada um por si e Deus contra todos”.

Conta a história de Kaspar, criado em um sótão, sem contato humano algum até os dezoito anos. Ele aparece em Nüremberg, por volta de 1828, trazendo uma carta na mão com pouquíssimas referências desta misteriosa origem, sendo acolhido na casa de um criminalista, o Sr. Feuerbach. É assassinado em 1833, mas o crime nunca foi esclarecido, pois seus vizinhos se interessam prioritariamente pelo mistério da origem, esquecendo o do crime: Seu cadáver é dissecado, e seu cérebro retalhado; mas o crime que o mata, não...Para isso, ninguém da cidade dá bola...

No filme, a ótica tradicional não é desafiada apenas pelo título; o olhar de Bruno S. (o ator que interpreta Kaspar) subverte o ATO DE OLHAR; assim como o olhar de Kaspar está lá plantado atônito num “mundo estranho”, onde “tudo é novo”, seu olhar perplexo, fixo diante das pessoas, das ruas, da paisagem, nos conduz ao mesmo estranhamento: tudo se torna paradoxalmente familiar e assustador; sem dúvida compulsoriamente NOVO:

“...as dimensões, o movimento, a lógica, a perspectiva, o pensamento, a fala, o riso”... (lembra, em seu livro sobre o olhar de Kaspar, Isidoro Blikstein, 1995, p.12) .

Como se não bastasse, precisamos arcar com outra informação perturbadora: Bruno S., o “ator”, tem uma história semelhante à Kaspar; não sabe sua origem, e foi “descoberto” por Herzog num hospital...

O cineasta decide “retirar o crachá de estranho” de Bruno S., talvez para colocá-lo em nós, em nossos olhos, em nosso olhar: o estranhamento poético e salutar da Arte, que perturba mas obriga a renovar, que arrebata à inevitabilidade da renovação.

Estranhamento do mesmo porte que costuma causar o questionamento da qualidade do suposto Poder Masculino no Planeta, questionamento esse que – não custa pensar nisso – poderia rever a própria qualidade da vida da Vida no Planeta...


Outra coisa é CULTURA.

Se falamos de estética, ética, identidade e gênero, precisamos falar dela também, claro.

Norberto Elias (1990), por exemplo, desenvolve o assunto através de uma sociogênese da diferença entre “kultur” e “zivilisation”:

...”o conceito de civilização minimiza as diferenças nacionais entre os povos: enfatiza o que é comum a todos os seres humanos ou - na opinião dos que o possuem - deveria sê-lo”...“o conceito alemão 'de‘Kultur’ dá ênfase especial a diferenças nacionais e à identidade particular de grupos”... (Elias, N.; 1990 pág 25).

Cultura faz fronteira com muitos fenômenos comportamentais referentes a estes grupos particulares, como (por exemplo) os universos geográficos, os universos étnicos, os universos hierárquicos de diversas instâncias, os universos feminino e/ou masculino e/ou gay e/lésbico e/ou transexual, ou os universos religiosos, ou os universos profissionais, e - inclusive – os universos da Estética, da Arte.

Podemos mesmo correr o risco de afirmar que há o viés de uma “Cultura Falocrática” perpassando todos estes universos com seu semi-silencioso poder (mesmo que autofágico).

Preocupado com equívocos que costumam acontecer na fronteira entre Arte e Cultura num Brasil freqüentemente engambelado pelo patriarcal populismo, Ronaldo Brito (2002), se referindo ao movimento neoconcreto, assinala que

...”a questão se desloca para o modo de sua recepção, sua incorporação ao nosso laboratório cultural cotidiano. Meu receio é que lhe esteja sendo reservado, se não já efetivamente preparado o mesmo destino ingrato que costuma perseguir nossas obras modernas tornadas célebres: de pronto, transformam - se em Imagens Cívicas, como a compensar nossa cidadania incipiente. Rápida, quase automaticamente, sublimamos a arte em cultura, a cultura em civismo. Razões históricas para tanto é que não faltam, obviamente. Por isso mesmo, quero crer, nosso instinto crítico deve ficar sempre esperto e, também ele, partir rápido ao contra - ataque, fazendo a experiência direta das obras”... (Brito, R.; 1999 / 2002, p. 7.)

Instinto crítico esperto, ou aguçado, se constrói com Educação (que deveria ser oferecida sistematicamente à sensibilidade de qualquer indivíduo em formação), comprando a briga contra a exclusão da maioria da fome de saber, da ...”-Você tem fome de quê? “.. que nossos bárbaros roqueiros locais gritam (o grupo Os Titãs), lembrando que a barbárie só aparece quando há excessos na cultura... Excesso de falta, ou de carência, ainda assim é excesso...

...”As formigas da Alemanha comem o mesmo que as formigas da Itália, mas os homens comem coisas diferentes em cada parte do mundo”... (Labbé, B. e Puech, M.; 2002, p. 14).

Democratizado o instinto crítico aguçado, seria dada passagem à fala dos inúmeros universos culturais, como também se permitiria o arejamento do diálogo entre os segmentos hipercomplexamente coexistentes na Cultura.

Cultura suficientemente hipercomplexa para abrigar - inclusive - questões dos universos íntimo e público.


No universo aqui especialmente abordado, há no mínimo dois diálogos fortemente precários, o que dificulta mediações:

- O do universo masculino (cada homem consigo mesmo, e homens entre homens);

- O do universo masculino com os demais universos do leque da sexualidade

(mulheres, gays, lésbicas, crosdreessers, transexuais, etc.);

O solilóquio, a fala e o diálogo dos elementos constituintes deste universo dos seres nascidos com sexo masculino têm priorizado (lamentavelmente) o silêncio.

Não necessariamente o silêncio da ordem da reflexão, da inquietude (que exercita e prepara o silêncio da futura morte tragicamente comum a todos), e/ou da criação; mas sim o da ordem da imatura e ressentida avareza emocional, o da perpetuada ignorância, o da perversão, o da autofagia, (falocráticas?) que lesam, com grosseria, a maiúscula Cultura:

...”Rilke diz que ‘os versos não são sentimentos, são experiências. Para escrever um único verso, é preciso ter visto muitas cidades, muitos homens e coisas’...Rilke não quer dizer, entretanto, que o verso seria a expressão de uma personalidade rica, capaz de viver e de ter vivido. As lembranças são necessárias, mas para serem esquecidas; para que nesse esquecimento, no silêncio de uma profunda metamorfose, nasça finalmente uma palavra, a primeira palavra de um verso”... (Blanchot, M.; 1987, p.83).

Logo, para sair de seu freqüente encapsulamento, para fugir da per-versão da Hiperacionalidade, para desenvolver com maiores turbulência (possibilidade de estado poético e agilidade) o potencial de seu processo de humanização, o contingente masculino poderia ‘ver um número maior de cidades, homens e coisas’…


Uma terceira coisa é a INDÚSTRIA CULTURAL.

No texto anterior falamos dela como espaço onde Esfera Íntima (Mundo da Vida) e Esfera Pública (Mundo Midiado) conseguem dialogar nesse momento; sua melhor face.

Mas não existe só essa, claro.

Se falamos de fetichismo e reificação (compulsoriamente falocráticos como vimos em textos anteriores) não podemos esquecê–la:

...”Com o termo ‘indústria cultural’, Adorno se propõe a explicar a arte consumida pelas massas, uma mercadoria que não é mais produzida pelo trabalho artesanal, mas conforme o modelo da manufatura e da grande indústria. Seu diagnóstico se contrapõe ao de Walter Benjamim; este confiava no potencial criativo desencadeado pela cooperação e o defendia na expectativa da ‘politização da arte’. Na perspectiva de Adorno, na indústria cultural, as massas não são o elemento ativo, mas pura passividade. Têm-se assim não apenas uma nova forma de despolitização da sociedade, mas um instrumento de domínio e integração social”... (Musse, R.; Coleção Caderno Mais! da Folha de São Paulo, 2003, p.13).

Não sei se chegou a ser publicado, mas, na intimidade que tive o privilégio de compartilhar, Herbert Daniel lembrava freqüentemente, com seu demolidor humor, que...“- Se cultura tem que dar lucro, sexo tem que dar filhos”...; mas, a indústria cultural crê que faz “produtos”, (inclusive humanos, como nos chamados “reality shows”), e deles quer, EXIGE, lucro.

Habitamos uma Sociedade do Espetáculo, e de Espetáculo pago, naturalmente: “NO FREE LUNCH”...


Especificamente aqui, a indústria cultural (brasileira) tem receita e sabor próprios.

Renato Ortiz, em 1998, perguntando em que medida o advento da sociedade moderna no Brasil recoloca a questão da relação “O Nacional” X “O Estrangeiro”, distingue dois períodos:

a) Precariedade, dependência, fragilidade institucional, assimilação “cultural” por alienação; desqualificamos nossa própria produção; o que vem de fora é que bom; o que é nosso só é bom se imitar o “estrangeiro” (daí as críticas de Monteiro Lobato ao grupo do movimento da Semana de 22, que - realmente - esqueceu de olhar para o nosso grande autor gaucho, Qorpo Santo, por exemplo, preferindo olhar para “o estrangeiro”, como bem o descreve em “Os Homens Precários” (1975) Flavio Aguiar (leitura que recomendo!).

b) Consolidação do Mercado cultural de massa (justificando a ação dos grupos empresariais brasileiros no mercado mundial): autonomização da esfera cultural brasileira, exercício pleno da indústria cultural no Brasil e consolidação de um mercado de bens simbólicos, por exemplo, na publicidade, da TV brasileira. Como se passássemos sem transição adequada da defesa do nacional popular, para a exportação do popular internacional...

É como se tivesse sido assimilada a seguinte (e inautêntica?) opção: ou você se torna cidadão “via” política, ou você se torna cidadão “via” consumo...

Pelo viés de uma dependência cultural, ficamos dependentes do monopólio e da manipulação de outros países, e do movimento de alienação; pelo viés histórico - ideológico, vivemos, inclusive, uma “construção nacional” que esteve nas mãos da “classe dominante Estado” (nas ditaduras), que “eliminou” as contradições sociais, assumindo o patético papel de suposta “agente modernizadora”...

De matriz da “cópia”, a cultura brasileira espelhando as metrópoles, colonialística e dependentemente, conseguimos passar a nos ver como “matriz da pluralidade”, onde não existe “uma (única) identidade brasileira”, mas uma história da construção de uma “ideologia de cultura brasileira”.


Quem busca esclarecer isso com grande bom humor é o professor Darci Ribeiro com seu conceito de “NINGUENDADE”, mais adequado que Identidade - segundo ele - para o nosso caso, pretendendo ele ser o mais elogioso possível à nossa cultura. Este conceito seria baseado, por sua vez, no conceito deleuziano da “casa vazia”. Nos jogos (damas, xadrez, futebol, etc.), é o espaço da casa vazia, é a “fome de ser ocupada” que tem a casa vazia, que faz o jogo andar: as peças podem se locomover, há trânsito para novas opções, há espaço para o gol ser feito e refeito, etc... Da mesma forma, para que qualquer universo seja dinâmico, deve nele acontecer o mesmo. Logo, haver sempre uma “casa vazia” na definição de nossa “identidade”, o fato de ser impossível “fechar questão” sobre ela, é uma vantagem: torna-a viva, atuante, permeável, sujeita a desenvolvimento, e não à estagnação.


Outros autores olham para o mesmo fenômeno pensando e propondo diferentemente:

...”Brasileiros e latino - americanos fazemos constantemente a experiência do caráter ‘postiço’, ‘inautêntico’, ‘imitado’ da vida cultural que levamos”...”Ela pode ser e foi interpretada de muitas maneiras, por românticos, naturalistas, modernistas, esquerda, direita, cosmopolitas, nacionalistas, etc., o que faz supor que corresponda a um problema durável e de fundo”...”O Papai Noel enfrentando a canícula em roupa de esquimó é um exemplo de inadequação. Da ótica de um tradicionalista, a guitarra elétrica no país do samba é outro. Entre os representantes do regime de 64 foi comum dizer que o povo brasileiro é despreparado e que democracia aqui não passava de uma impropriedade. No século XIX comentava-se o abismo entre a fachada liberal do Império, calcada no parlamentarismo inglês, e o regime de trabalho efetivo, que era escravo”... (Schwarz, R.; 1990 , p. 29) .

Assim, já Roberto Schwarz prefere e propõe a “casa cheia”; isto é, acredita que o “espaço tenso” reservado à criação e/ou à construção de uma cultura (um “entre lugar”, não necessariamente vazio, entre o “não ser” e o “ser o outro”) pode estar “cheio”: “CHEIO DE PROJETO”, e PROJETOS - afinal - só são construídos com reflexidade e autonomia (como o Projeto de minimizar inautenticidades com ações refletidas e responsáveis, por exemplo).


A “casa vazia” traria o movimento pelo Desejo; a “casa cheia” (de Projeto) traria o movimento pelo Projeto, partindo do princípio que o Desejo está posto, e que o movimento pode (e deve) ser direcionado para o que se escolha reflexivamente (com “instinto crítico esperto”, claro).

Roberto Schwarz faz ainda a crítica do conceito convencional de “cópia” (da “Xerox” às colagens, das “imitações” às refilmagens, do “inspirado em...” à reprodutibilidade técnica inevitavelmente incorporada a tantas formas de expressão artesanais ou artísticas, etc.), lembrando que ela, sociologicamente não é falsa, mas que precisa ser tratada com maior pragmatismo, do ponto de vista estético e político, precisando se libertar da mitologia da exigência da criação a partir de um suposto “nada”, pois a vida cultural tem dinamismos próprios, onde a eventual originalidade e a falta dela são alguns dos elementos, mas não os únicos, pois - do ponto de vista antropológico - podemos dizer “não estou copiando, estão só deslocando a história”.

Isso poderia nos remeter por sua vez ao Derrida que diz que “...o rastro do cometa “faz e não faz parte do cometa”; isto é, o rastro é ao mesmo tempo o cometa, é já outra coisa, e é ainda um derivado...).


O instinto crítico esperto de Ronaldo Brito e o Projeto de Roberto Schwarz comungam o desejo (e a esperança?) de reflexão e autonomia.

Que a autonomia da Arte seja mantida para continuar atuando como fonte de arrebatamento, de renovação, de conhecimento, como reserva utópica da atividade emancipadora, e que Cultura seja compreendida como um fenômeno que envolve Arte, mas não só ela, lembrando que ambas não “ficarão prontas” jamais, afinal...

A Indústria Cultural está posta; “para o bem e para o mal”, tem convivido com a Arte (que, quando decide emergir, não pede licença), e fica muito difícil meramente “xingá–la” de “lixo” (toda a cultura pop envolvida, lembremos).

Frank Sinatra é Indústria Cultural ou Arte, se pararmos para pensar AGORA?

Paulo Moura é popular ou erudito?

Bispo do Rosário: um esquizofrênico talentoso, ou um-artista-e-ponto-final?

Certas perguntas vão ficando mais difíceis com o passar do tempo...


Dualidades e impecabilidades vêm morrendo, e a plausibilidade - como temos visto - vem pela permeabilidade, pelo convívio hipercomplexo, mesmo imersos numa Sociedade de Espetáculo.

E isso NÃO é sinônimo de mera submissão à manipulação do Mercado (fetichismos e reificações incluídos), quando baseado em informação, educação, reflexão, arejamento que possibilite a Autonomia, a Crítica, o Projeto.

Quando a mediação tem espaço e mobilidade, não ficamos paralizados...

Seria impossível falar do que vem acontecendo com nossa indústria cultural, sem assinalar um exemplo prático que transite a fronteira dos universos íntimo e público.

Uma campanha publicitária que se multiplica é o de automóveis, de diferentes fábricas e grifes, onde o que há de comum é a maioria absoluta de “atores - motoristas” do sexo masculino, e a oferta de “potência” (supostamente do automóvel) e “maior velocidade” (chegar primeiro como um valor) a cada nova linha de automóveis.

Ora, um dos maiores motivos de morte e seqüelas graves nos altíssimos índices de morte e internamento hospitalar masculina é o de acidentes automobilísticos!...

Talvez o “produto” vendido ali seja a morte de muitos que (“compram” e) confundem poder (vertical e falocrático), velocidade (patriarcalista), ou “chegar primeiro” (patrimonialismo), com riscos que valham a pena, com estes símbolos claramente tanáticos. Afinal as ameaçadoras estatísticas vão para o ar tanto quanto os comerciais! Seria impossível assistir um e “ficar cego” para as outras!...

É um bom exemplo para a metáfora que procurei construir alguns parágrafos acima, sobre “os mistérios do SENTIDO dos crimes” do patriarcalismo e da falocracia, que continuam à deriva das “investigações” sobre nossos “kasparausianos cadáveres”...


Penso que há um ponto particularmente delicado na Arte, na Cultura (e até no melhor da Indústria Cultural), porque seria seu ponto mais sofisticado; seu “filé mignon”: o HUMOR.

Mas muitos o desqualificam.


Nas famílias o humor e a ironia são eleitos costumeiramente pelo senso comum como “defesas femininas ou efeminadas”, “estilísticas compulsoriamente proibidas ao contingente masculino”, ou avaliações diversas impressas no senso comum pelos ditos populares:

“- Mulheres vivem aos risinhos como as crianças; cabe aos homens a circunspeção”.

“- Homem confiável é homem sério; homens não riem, no máximo trabalham como

humoristas, mas aí é para ganhar dinheiro, então tudo bem”.

“- Muito riso, pouco sizo”.


Nas empresas, freqüentemente um gerente ou semelhante deixa de ser promovido se for considerado “muito risonho, falante, piadista, ‘demasiadamente’ bem-humorado, ‘duvidosamente’ simpático, etc.”...

Especialmente se for um elemento nascido com sexo masculino, mas – por ser uma postura em primeiro lugar patriarcalista – é exigida a mesma circunspecção das mulheres executivas; competência não basta; homem ou mulher há que ser circunspecto além de tecnicamente habilitado. Criatividade e humor não costumam “recomendar bem” um profissional; circunspecção e perícia são os pré-requisitos preferidos...


Esse mesmo humor, essa mesma ironia, são agora propostos como resistência legítima e consistente - por exemplo - pelo neo-marxista e esteta americano Jameson, F. (2001) - aliás - também mais um adepto da intimidade como espaço político (falamos dele também no texto anterior).

Já que Jameson, F. (2001) lembra o poder político do humor, aproveitemos para lembrar nossos antenados cartunistas: meu talentoso amigo Laerte (2000 e 2002), que criou, entre suas vária personagens, um “Deus” brincalhão e nada “patriarcal”, que descobre ter uma “Deusa parceira”, e tem como melhor amigo um “Diabo”, também casado com uma “parceira Diaba”, para nos deleitar em suas reflexivas e poéticas tiras humorísticas já publicadas com sucesso também em livro. Ou Adão Iturrusgarai.(2001 e 2002), que propõe uma solução para sua personagem “Aline”, que mora “quase” sem conflito não com um, mas com dois namorados simultaneamente, além de nos entreter através das tiras diárias da Folha de São Paulo com a dupla homossexual “Rock e Udson”, ou ainda com a lésbica radical “Emiliana Sapata” (brincadeiras política - e supostamente - incorretas inimagináveis há poucos anos atrás). Miguel Paiva (“tiras ” diárias em “O Globo”) que somou seu “Gatão de Meia Idade “ à sua consagrada “Radical Chique”.

Também diariamente, outros cartunistas planeta afora, informam, através de seu magicamente sintético talento, o que anda acontecendo em seus países de origem, na política, na economia, na ciência, no comportamento, etc.

Chamo a atenção para a freqüência com que as questões de gênero (e as que lhe são familiares) são abordadas através de inúmeras personagens que vêm surgindo neste universo democrático e sintético dos "quadrinhos”.


Já o próprio Freud, por exemplo, discorda (como eu e os demais já citados!) dos que desqualificam o humor:

...”O humor não é resignado, mas rebelde”... (Freud, S.; 1927, p. 191).

É o humor, afinal, que costuma melhor informar (através do palhaço do circo, dos comediantes, dos misteriosos construtores das piadas populares, dos cartunistas, dos anônimos com talento em se comunicar oficiosamente com humor na vida íntima e pública, etc.) democraticamente, a um número bem maior de pessoas, sobre os assuntos que até a Academia está discutindo.

Sigmund Freud (1927), no Congresso Internacional de Psicanálise em Innsbruck, assinalou que o humorista se vê antes como um órfão que como um herói, e (sem ser claro sobre onde ficam AS humoristas) distingue os não humoristas como aqueles que vivem como se afirmassem heroicamente: “- Nada pode me acontecer!”, numa demonstração de onipotência narcísica, e os humoristas como aqueles que vivem como se afirmassem como órfãos: “- Tudo pode me acontecer, mas mesmo assim eu aprendi a rir!”.

Dom Kupermann (2002), numa tese baseada especialmente neste texto de Freud, diz que para que se considere o que acontece como legítima manifestação de humor, deve - se verificar se o que acontece é lúcido e lúdico; acrescenta que o humor não se contrapõe ao que é sério, mas à realidade deserotizada, e à lucidez melancólica, criadas pela absoluta cisão entre os princípios do prazer e da realidade que nossa cultura endossou (e continua endossando).

Para Sigmund Freud (1927) o humor seria um enigma (uma ilusão que não ultrapassa os limites da saúde mental), e o humorista um paradoxo (trata a si mesmo como uma criança, e ao mesmo tempo como um adulto superior a essa criança, rindo de si mesmo); ainda segundo ele, os “enigmas” gerados por estes “paradoxos” seriam capazes de abrir brechas espantosas nas formulações metapsicológicas.


“Curiosamente”, os clowns (mitológicos e ritualísticos) que conhecemos, ancestrais, mas especialmente herdados no Ocidente de uma Tradição já patriarcalista, através - por exemplo - da Comédia Del‘Arte, apesar de herdeiros (por sua vez) dos ritos dionisíacos (cujas Mênades eram mulheres), são “entidades masculinas” por excelência, mesmo quando tão dúbias quanto Dionísio, (tradicionalmente ora cômicas ora trágicas, e freqüentemente com homens no papel de mulheres), a ponto das comediantes femininas serem um fenômeno contemporâneo pós-feminismo, do qual Lucille Ball é uma das melhores “primeiras luzes” referenciais (no palco e fora dele).

Enquanto isso, a iraquiana, radicada em Londres, Shazia Mizra põe hoje o próprio pescoço em risco com seus shows de stand up que ironizam (e desafiam) o fundamentalismo islâmico com piadas ousadas, o que ela faz sem deixar seu próprio véu de lado...

Nossas brasileiríssimas Dercy Gonçalves, Ema D Ávila, Berta Loran, Consuelo Leandro, Nair Belo, Nádia Maria, Heloisa Perissé, Dany Calabresa ou Carol Zoccoli: bons exemplos contemporâneos que vêm atravessando diferentes décadas munidas de uma rebeldia de saias, que nem Freud chegou a imaginar ou debater...


Artaud, o performático avant la lettre homem de teatro, desenvolvia (curiosa e poeticamente) um discurso sobre masculino/feminino em seus supostamente “delirantes” textos (como já vimos no texto anterior) muito semelhante ao que o psicoterapeuta Edward C. Whitmont desenvolveu mais tarde.

O livro deste psicólogo (1982), se intitula O retorno da Deusa, onde ele se mostra esperançoso quanto a re-inclusão do ‘significado de Ártemis’ no nosso imaginário, que parece ter ficado satisfeito com a dupla Apolo / Dionísio (como também desenvolvemos no texto anterior), na nossa subjetividade, preocupado com a banalização da violência provocada pelo ocultamento hipócrita da agressividade dos seres em processo de humanização que pretendemos e esperamos ser.

Para quem leu o texto anterior, a citação seguinte "fará par" à proposta que lá levantei sobre o assunto:

"...Na base dos mal-entendidos estava o polêmico ensaio que o escritor siciliano publicou em 1908, 'O HUMORISMO'. Nele Pirandello argumentava em favor de uma linhagem ou tradição literária que trabalhava não com o cômico, mas com o cômico interiorizado e filtrado pela auto-reflexão. O humor seria, então, produto do 'sentimento do contrário'; e o humorista, o artífice da farsa trágica da vida"...(Dias, M.S.; Prefácio. 'Quarenta novelas de Luigi Pirandello', com Seleção, tradução e prefácio de Maurício Santana Dias; 2008; pág.9)


Lembremos mais uma vez o que também desenvolvemos no texto anterior (ainda sobre o assunto) quanto a agressividade precisar fazer parte de nossa organicidade, de nossa humanidade.

Como tudo mais que nos pertence, podemos tomar saneadoramente posse dela; somos capazes disso.

Isso nos diz respeito tanto para criar Arte, como para exercer o humor (mesmo que doméstico), pois, para tal, é necessário exercer primeiramente o senso crítico.

Exercitar exercer o senso crítico depende de uma postura assertiva, isto é, agressiva sobre o mundo ou sobre o outro, embora não violenta!

Na medida em que a agressividade é hipocritamente proibida, reprimida, e não ritualizada (substituindo o “lutar contra” pelo “lutar por”, por exemplo) o exercício do senso crítico (quer para a Arte, quer para o desenvolvimento da construção de uma subjetividade consistente e autônoma) é sensivelmente lesado.

A tendência humana é, diante da interdição, proibir ou reprimir o “conjunto”, como por um imaginário “contágio”.

A agressividade da assertividade justa acaba tão reprimida quanto a da violência inadequada; fazemos de conta que é possível viver sem incorporar nossa cota humana de agressividade. Mas ela está lá, reprimida e (por isso mesmo) deseducada.

O conteúdo humanamente inevitável, vivo e reprimido, acaba emergindo (como todo conteúdo reprimido o faz) na forma per-vertida (vertida inadequadamente): a violência. Já outras coisas, como o desenvolvimento do senso crítico, não; não consegue emergir, porque não se desenvolve sequer.


Por que falar ainda de “Performances” / “Transperformances” , com “Estilo”?

...”Assim, o que importa não é que haja falta de admiração pública pela poesia e pela filosofia no mundo moderno, mas sim que esta admiração não constitui um espaço no qual as coisas são poupadas da destruição pelo tempo. A admiração pública, consumida diariamente em doses cada vez maiores, é ao contrário, tão fútil que a recompensa monetária, uma das coisas mais fúteis que existem, pode tornar-se mais ´objetiva´ e mais real...”(Arendt, H.; 1958/2005, p.66).

Pode parecer surpreendente a proximidade do discurso dos “Homens de teatro” com o dos “Homens da sociologia e/ou da Humanidades em geral”, o que sugere que mereceria um melhor estudo a escolha comum (das duas áreas) das nomenclaturas “ator social” ou “protagonismo”, “performances e transperformances”, “potencialidades perversas”, etc.

...”Se o teatro essencial se compara à peste não é por ser contagioso, mas por, tal como a peste, ser a revelação, a apresentação, a exteriorização dum profundo íntimo de crueldade latente, por meio da qual todas as potencialidades perversas do espírito, quer dum indivíduo, quer dum povo, são localizadas”... (Artaud, A.; 1983, p.11).

No momento, os representantes dos dois universos (Lehmann no teatro por exemplo, e inúmeros sociólogos que publicam sem parar, como nossa psicanalista e Doutora em sociologia Marlise Matos, por exemplo) falam não só de performance, mas também de reflexidade, de assertividade, de autonomia, de identidades múltiplas e dialógicas, de (ritual degenerado da) hipercomplexidade, etc.:

...”O Performer, com maiúscula, é o homem de ação. Não é um homem que representa um outro. Ele é o dançarino, o padre, o guerreiro : ele está fora dos tipos estéticos. O ritual é performance, uma ação completa, um ato. O ritual degenerado é espetáculo. Eu não quero descobrir alguma coisa de novo mas qualquer coisa de esquecido. Uma coisa tão antiga que todas as distinções entre tipos estéticos não são mais válidas. Eu sou teacher of Performer. Eu falo no singular”...”isto graças ao Performer , que é uma ponte entre a testemunha e alguma coisa.

Neste sentido, o Performer é pontifex, fazedor de pontes”... (Grotowski, J.; 1983, p.1).

A mediação (um fazer-pontes) é tema nosso e de muitos das duas áreas.


Para ser um Performer, não é necessário ser profissionalmente artista. Basta observar a estilística das ruas: tatuagens, piercings, emos, góticos, mauricinhos e patricinhas, neo-hippies, etc. Seu corpos falam; seus corpos comunicam; seus corpos 'fazem pontes'.


Mas exemplos de alguns artistas performáticos ilustram muito bem tanto a conceituação do homem de Teatro Jerzy Grotowski (1983), onde ele insinua poder confirmar hipóteses e/ou leituras que faço freqüentemente quanto à proposta da Psicossocióloga Marlise Matos (2000) quanto às nomenclaturas performer, performance e/ou transperformance, aplicadas aos “atores sociais” do ponto de vista das Questões contemporâneas (políticas, econômicas, sociais, comportamentais), e em especial das Questões de gênero, que são as que particularmente nos interessam aqui.

Acompanhemos um pouquinho do que tem acontecido no mundo da Arte nas mãos de alguns performers:

O norte-americano Chris Burden, recentemente em Brumadinho – MG – (montando uma escultura) começou seus trabalhos em Arte com performances. Não parece hoje o mesmo artista que, nos anos 70, pagou um amigo para lhe dar um tiro no braço, na performance que pôs seu nome entre os precursores da body art;

..."Foi na Guerra do Vietnã, quando milhares de garotos da minha idade eram alvo de disparos"..., lembra Burden, 63;

..."Planejei tudo: era para a bala passar de raspão e fazer rolar só uma gota de sangue."...
Rolaram muito mais, e Burden passou meses em conversas com psiquiatras tentando curar uma depressão pós-disparo. Recuperado, teve outras chances para se destruir. Foi crucificado na carroceria de um Fusca, com as mãos pregadas na fuselagem, e passou cinco dias confinado num armário. Também diz ter passado 22 dias escondido, sem comer, atrás de uma parede falsa.
Só interrompeu as performances quando guardas da fronteira da Holanda com a França impediram que o artista atravessasse o limite entre os países dirigindo um carro que ele mesmo construiu.


Outros artistas da área se aproximam especialmente de nossos temas com seus trabalhos:

O poeta norte americano Vito Acconci adotou a performance a partir dos anos sessenta, direcionando seu trabalho para os temas da fantasia sexual, ironizando o que ele via como “machismo intrínseco” também à arte! Em seu trabalho “Seedbed”, colocou uma rampa ao fundo de uma sala aparentemente vazia, com uma caixa de som no canto; o visitante que subia a rampa tinha como resposta os gemidos do artista, que se masturbava em baixo da estrutura de madeira, quando ouvia passos.

Em 1974, na obra que chamou de “Rhythm 0”, a iugoslava Marina Abramovic ficava parada ao lado de uma mesa onde estavam uma arma de fogo, um machado, tinta, perfume, batom, mel, azeite, etc. Na parede, fixou um texto onde se lia:

“Há 72 coisas sobre a mesa que podem ser usadas em mim conforme o desejado. Eu sou o objeto”. Seis horas depois, suas roupas haviam sido rasgadas, e - por exemplo - a arma tinha sido apontada para sua cabeça...

Ela foi casada com o artista alemão Ulay, com quem compartilhou vários trabalhos. Em 1985 (inclusive no Brasil) , em “Nightsea Crossing” o casal se olhava fixamente por sete horas. Já quando decidiram se separar em 1988, transformaram a decisão numa última obra juntos; realizaram “The lovers - The great wall walk”, partindo cada um de um extremo da Muralha da China, caminhando até se encontrarem, separando - se - aí - para sempre.


Transitando a fronteira da psicologia de gênero com a sociologia, Marlise Matos (2000) caso incluísse em suas atividades a artística, teria muitos “espetáculos” a propor (ou experimentar), quem sabe brincando também com “muralhas” tão titânicas (ou tirânicas?) quanto às da China:

...”,compartilho a visão de que o gênero atravessa ‘fronteiras’ políticas (‘transperformances’) cruciais entre: subjetivo e coletivo, masculino e feminino, estabilidade / permanência e instabilidade / fluidez, carne e símbolo , biológico e histórico , etc. Desta forma , a natureza de uma ‘ética de gênero’ poderia oscilar entre um ceticismo radical (abandono de qualquer garantia ou possibilidade de conhecimento , abertura total) e silêncio absoluto (na ausência de pontos fixos ou sólidos comuns),e uma posição menos extrema , na qual meu esforço aqui aposta: a natureza discutível , argumentativa e relacional, interativamente aberta, dos valores envolvidos na perspectiva de gênero”...(Matos, Marlise ; 2000 , p. 112 e 113, negritos e sublinhado meus).

A Questão que volta imediatamente à baila, diz respeito ao DESEJO do contingente masculino de experimentar uma “relação dialógica sobre as práticas sociais da dinâmica interativa dos gêneros, seus hábitos e práticas comuns” ; a começar pela relação dialógica sobre as práticas sociais da dinâmica interativa entre os próprios homens, sem a qual a “dos gêneros” não irá adiante.

Quando DESEJA, Orfeu desce até os infernos; repito a frase, e repito a citação de Blanchot que já fiz no texto anterior:

....”Quando Orfeu desce rumo a Eurídice, a arte é a potência na qual a noite se abre. A noite, pela força da arte, o acolhe, torna - se intimidade acolhedora, entendimento e acordo da primeira noite. Mas é rumo a Eurídice que Orfeu desce”... (Blanchot, M.; 1955 / traduzido por Lopes, A. L. em 1986, p.9).


`A frente de psicólogos, sociólogos, antropólogos, o cartunista Laerte (preferindo o “Projeto” à mera “casa vazia”), acaba de criar novas personagens para seus “quadrinhos” de “Os piratas do Tietê”: crianças do sexo masculino que debatem sua nomeada “masculinidade”.

`A frente em suas própias áreas, Matos, M. (2000), também Projeto em punho em sua obra teórica e prática, se preocupa não só com o masculino, mas também com a possibilidade de renovação das conjugalidades, pois delas emergirão tanto “casas vazias” esfomeadas de criação, quanto os novos Projetos que se refiram ao Masculino: conjugalidades renovadas, educação de crianças renovada, afinal.

...”De uma designação lógica e naturalizada (´ser homem’ , ‘ser mulher´ , etc.) desloco o foco para a relação dialógica: as práticas sociais da dinâmica interativa dos gêneros , seus hábitos e práticas comuns .”... (Matos, Marlise; 2000, p. 112 e 113).


Teatro no palco, no altar, nas ruas, na intimidade dos lares; alguns atores por profissão, todos plausíveis atores sociais, conceituar a diferença deixa de ser prioridade no momento em que a essência libidinal, erótica, e - por que não? - agressiva da Vida na vida da inquietude criadora e transmutadora se faz presente, para os seres em processo de humanização: seres éticos e estéticos.


Tadeuz Kantor (1983), autor e diretor de teatro, re-introduz o “sagrado” tema do elo humano entre a religiosidade e o nascimento do ator, buscando descrever o momento de sublime ruptura que levou um cidadão envolvido nos ritos dionisíacos a se auto-proclamar o primeiro ator (o que é atribuído historicamente a um rapaz chamado Téspis):

...”O ator ele - próprio, relegado para fora da sociedade, tem adquirido não somente inimigos obstinados, como admiradores fanáticos. Opróbrio e glória conjugados. Seria de um formalismo ridículo e superficial querer explicar esse ato de RUPTURA pelo egotismo, o apetite de glória ou uma tendência nata para a parada. Deveria tratar - se de um compromisso mais considerável, de uma COMUNICAÇÃO de importância capital”... (Kantor, T.;1983,p.10) .

O autor tem a preocupação (pós moderna?) de assinalar a face generosa, curotroficamente preocupada com a alteridade da RUPTURA, o que nos levaria a refletir, mais uma vez, sobre o compartilhamento de nomenclaturas referentes a “ator social”; dado a dificuldade de acesso ao precioso texto, deixo de lado o pudor de insistir nas citações:

...”DIANTE daqueles que ficaram deste lado, um homem ergueu - se EXATAMENTE igual a cada um deles e no entanto (em virtude de alguma ‘operação’ misteriosa e admirável) infinitamente DISTANTE, terrivelmente ESTRANHO, como que habitado pela morte , afastado deles por uma BARREIRA que por ser invisível não parecia menos apavorante e inconcebível, tal que o sentido verdadeiro e a HONRA só podem nos ser revelados em SONHO”...”Vejo - o antes como um rebelde, um herege, livre e trágico, por ter ousado ficar só com o seu destino. E se acrescentarmos ‘com o seu PAPEL’ , temos diante de nós o ATOR”...“Esse fato, ou melhor essa manifestação, provocou provavelmente uma grande comoção nos espíritos e suscitou opiniões contraditórias. Muito certamente ter - se - á julgado esse ATO como uma traição para com as tradições antigas e as práticas do culto; ter - se - á visto aí uma manifestação de orgulho profano, de ateísmo, de perigosas tendências subversivas; ter - se - á gritado ao escândalo, à amoralidade, à indecência; ter - se - á examinado o homem tal um bagunceiro, um cabotino, um exibicionista, um depravado”....(Kantor, T.; 1983 p. 10, maiúsculas e sublinhado pelo próprio autor).

A opção de abrir mão da estabilidade, para preferir (ônus por ônus...) o prazer (da liberdade criadora) assinalada hoje por exemplo pelo filósofo Zigmunt Bauman (1998), é descrita neste momento sagrado e sublime da antigüidade (levando a que eu me pergunte se seria a performance uma “inautenticidade transparente”...).

O que talvez tenha fugido às preocupações de Kantor, T.(1983), é a possível luz que o seu texto sobre a antropologia da arte cênica poderia lançar não só sobre a sociologia com seus “atores sociais”, mas também, especificamente, sobre as contemporâneas discussões sobre as ora belas ora terríveis estilísticas expressas pela religiosidade humana, num caminho surpreendentemente inverso ao supostamente proposto por ele:

...”Essa imagem viva do HOMEM saindo das trevas, seguindo sua caminhada sempre em frente, constituía um MANIFESTO, irradiando, de sua nova CONDIÇÃO HUMANA , somente HUMANA, com sua RESPONSABILIDADE e sua CONSCIÊNCIA trágica, medindo seu DESTINO numa escala implacável e definitiva, a escala da MORTE. É dos espaços da MORTE que se dirigia esse MANIFESTO revelador que provocou no público (utilizemos um termo de hoje) essa emoção metafísica”... (Kantor, T.; 1983, p.11, maiúsculas do próprio autor).

Como todos os sociólogos (pós-modernos?) também apontados ao longo deste trabalho, este autor teatral clama também por amparo metafísico, reflexidade, senso crítico e autonomia nas escolhas.


Como Téspis, alguns poucos seres em processo de humanização do sexo masculino, têm buscado romper com as trevas falocráticas, patriarcalistas, homofóbicas, fetichistas, reificadoras (a aparentemente compulsiva repetição dos vocábulos é proposital); todo o TEATRO HUMANO emergiu desta tragicamente solitária ousadia de Téspis; quem sabe o ATOR SOCIAL HOMEM possa emergir da futura comunhão dos modestos manifestos destes desbravadores?

...”Devemos fazer renascer esse impacto original do instante em que um homem (ator) apareceu pela primeira vez diante de outros homens (espectadores) , exatamente semelhante a cada um de nós e no entanto infinitamente estranho, para além dessa barreira que não pode se ultrapassada”...”Os meios e a arte desse homem, o ATOR, (para empregar ainda nosso próprio vocabulário) , ligavam - se também à MORTE , a sua trágica e horrível beleza”...(Kantor, T.; 1983, p.11, maiúsculas do autor) .

Viver, morrer, talvez sonhar, Eros e Tânatos, fertilidade, colheita, sexo, procriação, fome, saciedade, sociedade, alegria, sofrimento, passividade e agressividade, sublimações; motivos para ritualizar (com estilos singulares) a sensação de contato com o SAGRADO nunca faltaram. Entre a convivência diária e o teatro, a religiosidade costurou nossa fome de teo / teleologia .


Weber, Max (1980), por exemplo, em seu estudo da religiosidade indiana, analisa as direções da renúncia religiosa ascética do mundo através de recortes nas esferas política, econômica, estética, erótica, e intelectual; foi impossível também para ele dissociar os temas uns dos outros, para refletí-los com maior responsabilidade.

Hoje, as últimas gotas do antigo padrão de ingenuidade acabaram, se é que algum dia tamanha ingenuidade existiu, e sabemos o quanto - hipercomplexamente - questões íntimas, como as de gênero são “nobres”, ou “sagradas”.

Elas permeiam todas essas temáticas, essa rede de temas, que aguarda(m) nossos olhos de Kaspar Hauser, numa tradução mais responsável e reflexiva do que um dia chamamos ingenuidade.


Quem sabe o próximo exercício de capítulo que farei aqui se refira à IDENTIDADE - RELIGIOSIDADE e MASCULINIDADES?


Ilustração: "Escada de dois gumes para uso não humano" - Proposta performática de Marina Abramovic - 2008 - Fotografia minha, exposição em São Paulo.

10 comentários:

Udi disse...

Miniiina!
Tudo isso (até li o comecinho e num é que até entendi?!) e eu tendo que trabalhar ainda...

"...a filosofia é entendida como a expressão e interpretação da experiência humana, que é inexoravelmente a experiência de seres sexuais"

uau! dá vontade de prosseguir.

eu volto!
bjs

* e essa imagem, hein? sem ampliar não dá prá perceber... afffe! "para uso não humano" ...para uso desumano?

Bia disse...

Nossa!!
Impressionante!
Eu gosto demais do que escreve, da maneira como escreve!
Realmente lhe admiro....cada dia mais!!
PARABÉNS!!!!!
Venha para SAMPA!!!

Um beijo no coração!!
Biazinha

Udi disse...

Mais uma prá engrossar o coro dos que te querem aqui em Sampa!
;)

conduarte disse...

Adorei seu comentário por lá... Sua tese aqui, é bárbara! Complexa. Espero saber do programa... Avisa... Beijos, CON

Prof. Israel Lima disse...

Boa Noite!

Parabéns pelo belo espaço.
Sucesso.

Tenha uma semana abençoada!

Até a próxima.

Groo disse...

Oi, Christina!

Ah, eu já conheço Morin e "os sete saberes necessários à educação do futuro". Isso é por demais estudado em alguns meios acadêmicos e até mesmo nas escolas já discutiram partes das ideias de Morin.

Eu agradeço bastante pela lembrança. Depois eu faço comentários melhores, é que já é madrugada...rsss

bjs e obrigado, viu? té +!

Caricaturas Urbanoides disse...

Olha, vou te dizer uma coisa, é uma vergonha esses nossos conselhos.. cada dia mais fico decepcionada com essa completa inercia.. é como se não quisessem tomar para si a responsabilidade de assuntos que nos dizem respeito! Fico profundamente irritada com esse excesso de pensamento e pouca lógica!
Penso que essa imparcialidade se espelha nos profissionais. Não vemos mobilizações dos profissionais para alguns assuntos de extrema importancia.
Vamos e convenhamos que um conselho que não pune aqueles que vão contra o codigo de ética, mesmo que apresente todas as provas do mundo, não merec ser levado a serio..
O pior é que sou obrigada a dar dinheiro para eles!!!
Isso é o fim do mundo!

conduarte disse...

Cris, eu tenho que ;er tudo que deixou aqui aos poucos, assim como capítulos, é muita coisa. UFA! É uma tese! Ahahahahaha muito bem, vc é professora, mestra! Um beijo, parabéns, e obrigada por seu carinho, CON

Valdemir Reis disse...

Olá amiga Christina é sempre uma grande satisfação voltar aqui, registro minha gratidão por sua amizade, atenção e gentileza, obrigado mesmo de coração por sua visita e comentário, tudo isto nos fortalece e aproxima. A casa é nossa volte sempre. Saiba que admiro muito o seu trabalho. Realizado sempre com muita Inteligência e excelente qualidade, parabéns pelo interessante tema escolhido e publicado, meu reconhecimento e votos de muito sucesso e brilho.
Quero compartilhar com você o poema abaixo do nosso imortal Vinícius de Moraes:
“Certas palavras podem dizer muitas coisas;
Certos olhares podem valer mais do que mil palavras;
Certos momentos nos fazem esquecer que existe um mundo lá fora;
Certos gestos, parecem sinais guiando-nos pelo caminho;
Certos toques parecem estremecer todo nosso coração;
Certos detalhes nos dão certeza de que existem pessoas especiais,
Assim como você que deixarão belas lembranças para todo o sempre. Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.”
Desejo um fim de semana repleto de alegrias extensivo aos familiares. Forte abraço, paz, luz, saúde, prosperidade e muitas bênçãos. Fique com Deus. Felicidades.
Valdemir Reis

Ana disse...

Que bom encontrar aqui uma citação que eu adoro de João dos Santos!
Bjs
Ana