terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Herbert Daniel para os mais jovens que não acompanharam certos acontecimentos:


De vez em quando tenho 'ataques de saudades' do H. Daniel e do Claudio Mesquita...
Achei esse link, com dados que especialmente os mais jovens talvez não conheçam :
http://memoriamhb.blogspot.com/2010/03/carta-de-herbert-censurada-no-congresso.html
Carta de Herbert Daniel, publicada no Lampião da Esquina, março de 1980, nº 22, ano 2, pág. 10:

Paris, 26 de outubro de 1979.
"Meus amigos, não fui anistiado. Sou um dos poucos exilados que restam fora das margens que o governo quer impor entre os anistiáveis e condenáveis. Não importa quantos somos, os marginais. Importa que estamos aí para definir o (mau) caráter das medidas que o governo chama de anistia. Ao estabelecer um limite, qualquer que seja, à Anistia, o Poder conserva um trunfo: quer provar que não cede, concede.

Importante que existam os não-anistiados. Não por nós, que temos pouco significado, mas como exemplo e aviso às verdadeiras forças democráticas: continuam em vigor o exílio, a prisão política, o regime de exceção. Não é uma burra intransigência que afeta algumas pessoas, mas a tentativa de impor as regras duma 'democracia parcial'. Não se engana ninguém, a não ser a quem o engano recompensa, o que não é o caso dos que passam na Democracia como algo mais que as aparências hipócritas de um jogo onde nem sempre ganha é o juiz, que superior 'às paixões políticas' nem entra na partida, mas decide a contenda.

É parte do plano, o fato de sermos muito poucos os bodes expiatórios. Ninguém vai fazer no caso de meia dúzia um deus-nos-acuda; pelo menos assim raciocinam os tecnocratas da ditadura com a sua bem conhecida mania de transformar política em aritimética. Porém, não se trata de contagem, está em questão a Democracia que não é só um pouco mais ou pouco menos de ditadura. Nunca foi decisiva a quantidade de exilados e presos, mas a existência mesma do exílio ou da cadeia. A Anistia não é só o problema pessoal de alguns renitentes: coloca um problema político de todos os brasileiros. Nunca se pediu perdão para alguns, exigimos liberdade para todos.

Por isto mesmo não escrevo como um dos 'injustiçados', mas como um qualquer cidadão, que continuo sendo apesar da arbitrariedade que faz que o Consulado de Paris me recuse o passaporte, ou seja, me recuse o direito à cidadania, abuso característico de um regime policialesco onde o desrespeito aos direitos elementares é a forma de fazer executar a lei (ou o seu infrator, no caso extremo, não tão extremamente rar no Brasil).

Não é absolutamente o meu caso pessoal que interessa neste momento. Quem está em discussão não sou eu, mas a anistia do governo. Não pretendo absolutamente utilizar recursos jurídicos mais ou menos astuciosos para me beneficiar dos limites da anistia, pois não creio que seja o meu caso que tem que entrar na anistia, mas é a anistia que tem que entrar em todos os casos dos que foram condenados pela ditadura. Não sou eu quem tem que tentar reduzir minhas penas, mas é a Anistia que deve se ampliar. Isto nada tem a ver com as interpretações de jurisprudência, mas com a evolução democrática do país.

Não continua somente a pequena novela do exílio de uns gatos pingados, mas a vasta história da opressão de todo um povo. Esta aí denuncio, ao falar do meu degredo. Escrevo para denunciar uma ditadura e não para começar a mover petições, processos e outros pauzinhos jurídicos para dar um jeitinho nesta anistia que quer fantasiar a restrição da liberdade. Não é com um jeitinho que se resolve a esculhambação da nossa vida política.

Aceitar fazer da Anistia uma mera questão jurídica é referendar a velha política da ditadura, que sempre tratou seus oponentes como criminosos. Minha participação política foi definida e tratada como crime - e como 'crime comum'. Não me humilha, nem diminui ser tratado como 'criminoso comum'. Revolta-me, seguramente como são tratados no Brasil os 'criminosos comuns'. Por enquanto falamos duma anistia para os 'crimes políticos'.. Um dia teremos uma democracia que nos permita discutir politicamente o crime comum. Muito bem. Até um certo motivo de orgulho. Gente melhor do que eu morreu dignamente entre ladrões e nem por isto deixou de ser menos Cristo.

No consulado me disseram: 'No seu caso temos que esperar, por enquanto'. Esperar, porém, não é esperança - que é a coisa mais ativa que a espera de quem nunca alcança. Esperança nós fazemos, sem esperar as decisões dos poderosos. Minha esperança na Democracia me impede absolutamente de esperar resolver a volta à minha terra segundo a generosidade da Ditadura. Não há nada que a Ditadura tenha a me perdoar ou conceder. Ser anistiado não significa se arrepender diante da ditadura, mas permitir que ela reconheça alguns erros. Não somos nós, exilados e presos, que nos autocriticamos diante da ditadura, mas é um movimento popular democrático atual que obriga o governo a remendar alguns dos seus desmandos.

Nunca erramos por nos opor ao governo ditatorial - e a anistia vem para provar que se houve abuso e crime não foi da parte dos opositores. Como, aliás, o exílio, a prisão, a terrível época que sofremos todos no Brasil vêm para provar enganos políticos nossos e para exigir autocrítica. Tenho por mim que por ter participado da oposição armada à ditadura, não há nenhuma explicação a dar à ditadura. Há uma autocrítica - e feita na discussão com quem interessar possa: isto é, aos que lutam pela Democracia. Não me 'arrependo', não tenho 'culpas' e não acho que houve nada de condenável no que fiz. Quando digo autocrítica, quero me referir a uum julgamento político bem preciso cuja moralidade decorre de princípios que nada têm a ver comm a culpabilidade. Hoje em dia critico a minha participação na tentiva [sic] de sublevação armada por sua ineficácia política e não por qualquer razão falsamente moralizadora. A forma que escolhemos na época para combater nos conduziu a um fracasso cujas conseqüências são bastante mais graves do que o desaastre do exílio e da prisão. Não há como fugir de assumir a responsabilidade duma ação política incorreta: não é pouca a responsabilidade duma ação política incorreta: não é pouca a responsabilidade que temos, todos os dessa geração que foi a minha, de não ter conseguido evitar estes sombrios anos de opressão e desespeero. Se este fracasso nos marca e acompanha, nem por isto nos destrói ou aniquila a memória, patrimônio quenão se pode perder.

Nada a esquecer, não podemos esquecer nada, pelo contrário, é preciso saber muito mais. Lembrar (e conhecer) o que foi esse tempo de silêncio e meias verdades ao som de hinos militares ou militarizados que cantavam o medo e a renúncia. A Anistia não vem para apagar fatos da nossa história recente: ela deve vir para ativar nossa memória, para fazer dessas recordações atualmente dispersas e pessoais uma observação viva na consciência coletiva da nossa gente. A Anistia não deve vir como o último ato de um erro político, mas o primeiro momento de uma renovação, onde a autocrítica não seja apenas uma declaração de intenções, mas a comemoração de avanços da Democracia.

Lembrar quer dizer renovar: a ditadura bem gostaria de fazer esquecer tudo, nenhuma conta a prestar. Acontece que 'esquecer o passado' aqui quer dizer esconder o presente. Não é nenhum revanchismo querer apurar asresponsabilidades [sic], pois não se trata de 'vingar' uma derrota - o que se quer é consolidar uma vitória.

O exílio me ensinou algumas coisas. Inclusive a saudade, que não é fictício desejo de reviver fantasmas, mas uma certa nostalgia de um futuro que não foi, embora desejado. Não quero voltar em busca de ilusões perdidas, mas gostaria de ir para a minha terra encontrar algumas esperanças.

Acho que de tudo o que eu disse fica claro quem são os amigos para quem escrevo esta carta. Vamos nos rever em breve, pessoal, já que nunca nosdesencontramos [sic]. Por aqui faz muito frio mas tenho a vantagem de saber que estou aí com vocês no mesmo barco para o mesmo porto. O que é como o batuque: um privilégio. Até breve. (Herbert-Daniel de Carvalho)"


Imagem: Herberte Daniel à esq, um amigo que ainda não identifiquei, e Claudio Mesquita à dir.

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