segunda-feira, 18 de junho de 2012

Angela Bosco generosamente postou a belíssima crônica de Francisco Bosco, que trago para cá com aplausos para o autor; EMOCIONEM-SE! (O Francisco faz a gente ter certeza de HOMEM está prestes a existir...):

                                   de Francisco Bosco - PATERNIDADE

"Como eu posso sentir assim em relação a alguém que conheço há menos de 12 horas?

Eu tinha me planejado para que esta coluna fosse dedicada a uma análise da obra de meu pai, João Bosco, que hoje, quarta-feira, estará sendo homenageado pelo Prêmio da Música Brasileira, numa festa no Teatro Municipal que contará com importantes artistas da nossa música interpretando suas canções. Mas, por um lance inesperado e dotado de uma emocionante simetria para mim, minha primeira filha nasceu na última sexta-feira, duas semanas antes do previsto. Assim, o filho que estaria agora escrevendo sobre o pai é o pai que estará escrevendo sobre a filha. Mais exatamente, sobre a experiência da paternidade. Vou me permitir escrever com a emoção que me cinge como uma aura desde a última sexta, às 15h21m, quando minha filha veio ao mundo.

O curta-metragem do parto, que filmei com mão firme, registra o momento exato do nascimento da minha paternidade. Quando vejo a cabeça do bebê saindo para as mãos do obstetra, antes mesmo de o corpo deixar-se ver inteiro, emito um som que nunca emiti na vida. Que nunca ouvi na vida. Um fragmento de voz quebradiça e espantada, muito frágil, um projétil de voz trêmula que parece conter todo meu ser. Um ser feito de casca de ovo, quebrando-se ao contato do ar. Esse foi o momento exato. Ninguém que viu o filmete do parto reparou nele. Ele só existe para mim. Como a fotografia do Jardim de Inverno, que para Barthes continha a essência do ser de sua mãe, ele não pode ser visto por ninguém. No meu caso, o sentido da experiência se expressou por um som — que não poderá ser ouvido por ninguém.

A partir daí fui dominado pela emoção. Eu queria agradecer à equipe que realizou o parto, mas não conseguia emitir uma única palavra. O anestesista me perguntava qual o nome do bebê e eu não conseguia dizer nem isso. Juntando todas as forças fui capaz de lançar, num sopro único, uma frase de agradecimento aos médicos, mas a voz falhou antes de chegar ao final. A propósito, lembrei-me de Deleuz falando mal dos médicos. Nunca concordei com isso. Já conheci médicos horríveis, claro, como há pessoas horríveis em quaisquer profissões. Mas tenho em geral profundo respeito pela figura do médico. O obstetra que realizou o parto de minha filha, Bruno Alencar, é um dos sujeitos mais admiráveis que já conheci: sinceramente empático, possuidor de um conhecimento rigoroso de seu ofício, conhecimento transmitido sempre com segurança, tranquilidade e clareza.

Voltando ao meu Jardim de Inverno particular, começou aí, após o parto, uma experiência que desembocou numa espécie de êxtase quando recebi minha filha no colo, no berçário, e a mostrei à minha família através do vidro. Assim como o som do nascimento da minha paternidade está filmado, o meu rosto extático está registrado em fotos. Ele não é belo nem feio, não é triste nem alegre, é um rosto que eu nunca vi em mim. Se eu tiver que interpretá- lo, eu diria que é o rosto do amor supremo. Frágil, marcado pelo cansaço, pelo choro na sala de parto, mas sobretudo pelo surgimento do amor supremo.

Poucas horas depois estava eu, já no quarto da maternidade, com minha filha dormindo em meu peito, pele sobre pele. A certa altura ela começou a apresentar dificuldades de respiração. O ar parecia não lhe vir como deveria, e ela desatou a chorar. Chamamos a enfermeira, que a levou para o berçário, a fim de cuidar disso que disseram ser uma “secreção pós-parto” — acontecimento normal par as enfermeiras, mas angustiante para pais de primeira viagem. Pois bem, não suportei ficar afastado nem um minuto da minha filha e fui atrás dela no berçário. “Como eu posso sentir assim em relação a alguém que conheço há menos de 12 horas?” Esse amor supremo dos pais para os filhos talvez seja um efeito da precariedade que caracteriza o nascituro humano. Talvez todo amor requeira no outro uma falta, uma incompletude por onde se possa entrar. Ora, um bebê é todo ele incompleto, todo espaço, onde portanto nosso amor se instala, sem limites.

Em outra chave, pergunta-se se esse amor é de ordem instintiva, natural, biológica — ou de ordem cultural, como um mandamento, uma ideia de amor transmitida ao longo de gerações. Tende-se a diminuir o que é da ordem do cultural, como se, além de alienante, fosse artificial. Mas nunca se deve subestimar a força das transmissões culturais milenares, nem esquecer que a alienação se confunde com nossas identidades.

Voltando ao ponto do meu êxtase, a experiência que me aconteceu no berçário foi uma experiência coletiva. O meu espanto se encontrou com o espanto da minha família e da família da Antonia, minha mulher. Eu me senti irradiando e recebendo uma onda de amor e alegria de dimensões sem precedentes na minha vida. O amor absoluto pela filha essencializa todas as relações familiais. Ao abraçar minha irmã, senti o sumo da fraternidade, aquele ouro emocional que fica escondido pelo cotidiano. Ao abraçar minha mãe, tive uma abertura para sentimentos como que atávicos de filiação. Na figura do meu pai eu via o tempo todo a mim mesmo (sempre vi, na verdade).

Espero que os leitores desta coluna compreendam minha necessidade de dizer o nome, aqui, de cada um dos familiares que estiveram comigo nesse momento, sendo comigo esse momento: minha mãe, Angela; meu pai, João Bosco; minha irmã, Julia; Sonia e Helinho, pais de Antonia; Maria e Francisco, irmãos de Antonia; Rita Grassi, madrinha de nossa filha. A todos, meu amor."

Publicado originalmente em O Globo, em 13/06/2012

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