quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

UMA EXPERIÊNCA INTERESSANTE DE MARIA HELENA KUHNER


Maria Helena, citadíssima nesse BLOG, e mais citada ainda no meu livro "Homem ainda não existe - Compartilhando reflexões para que ele exista", generosamente (como sempre) mandou ontem para a página de debates sobre os temas do livro do Facebook (https://www.facebook.com/groups/233614050040876/permalink/262945837107697/) o seguinte relato:
"Oi, Cristina!
Um fato real acontecido comigo, como colaboração a seu livro. Está fazendo parte de meu livro "Teatro e Movimentos Sociais", como introdução a um dos textos teatrais que o compõem. Veja só o que diz:

"Da época (1988/ 89/ 90) em que eu redigia os manifestos que seriam distribuídos no dia 8 de março (Dia Internacional da Mulher ), guardei a preocupação de ouvir e expressar uma voz coletiva - no caso, ouvindo as mais de 60 entidades que compunham o Fórum Feminista do RJ - de modo a dar ao que era dito maior legitimidade e significação. Preocupação que manteria ao criar e coordenar, de 1989 a nossos dias, o Projeto Anna Magnani ( 39 eventos realizados) , visando à promoção das formas de expressão e manifestação da Mulher, e das inúmeras questões ligadas à construção de um mundo plural e melhor.
Preocupação que me seria válida no momento de atender ao convite do SINDIÁGUA, de Porto Alegre, para o Encontro de Delegados Sindicais do Rio Grande do Sul: os organizadores queriam colocar em questão o tema da relação homem-mulher ( o Encontro reuniria cerca de 160 homens e umas 5 ou 6 mulheres) sem a polêmica agressividade que havia caracterizado ( e, de certo modo, frustrado) tentativas anteriores.
Daí ter eu decidido buscar na música – principal forma de expressão popular – um eixo de expressão, com uma pesquisa em nossa Música Popular Brasileira.
O desafio que eu iria ter pela frente fixou claro para mim logo ao entrar no salão em que se realizaria a Oficina com esse tema, para 24 homens e 6 mulheres: todos os homens estavam agrupados à direita e todas as mulheres à esquerda, com um espaço vazio de cerca de um 1m. de largura entre os dois grupos, e tendo, ao fundo, encostada à parede, a mesa e cadeira onde eu supostamente ficaria. A organização do espaço era eloquente, falava já por si mesma.
Abrindo a conversa, apresentei a proposta: resgatar, com base na Música Popular Brasileira, a trajetória das mudanças ocorridas na relação homem-mulher, do início a meados do século 20, século em que começaram a surgir grandes mudanças nessa relação. Disse que eu tinha trazido uma fita gravada, com algumas sugestões, mas que a idéia era de que as demais músicas viessem a ser lembradas em conjunto, à medida que os temas fossem surgindo. E que, como eu não conhecia muito a música gaúcha, talvez fosse interessante começarmos levantando, talvez, alguma ou algumas que tratassem do tema.
Aceita a proposta, percebi que dois homens na primeira fila se entreolhavam com um sorriso maroto, e um deles disse :
- Eu sei de uma música, muito conhecida aqui no sul, sobre isso.
- Você pode cantar?
Ele se levantou e cantou: “Aprendi a domar/ amanuciando éguas/ e para as mulheres/ vale as mesmas regras / Animal, te pára!......” Enquanto a música continuava dizendo algo como “Não venhas para mim rebolando os quartos, que eu sei como te trato: é no chicote”, os olhares se fixavam em mim como se esperassem ver uma mulher à beira de um ataque de nervos.
Ele terminou e eu perguntei:
- Você acha que essa música representa o homem gaúcho?
- Bom, ela faz sucesso aqui há anos...
- Puxa, como o homem gaúcho é infeliz! - exclamei.
O espanto arregalou os olhos, sem entenderem: “O homem... infeliz” ?
Decidi me explicar:
- Pelo que eu entendi, a música fala de um garoto do interior, que “aprende a domar amansando éguas”, não é? Ora, é sabido que, não só aqui no sul, como em muitos pontos do Brasil, e até do mundo, o garoto do interior muitas vezes aprende a fazer sexo com animais, cabras, éguas, etc. E isso pode, mesmo, deixar marcas mais tarde: ele só ver na parceira a fêmea com quem ele, o macho, vai aliviar seu tesão. Mas, com isso ele pode perder uma das coisas mais bonitas e mais gostosas da relação sexual humana: a ternura.
Quando, na década de 1960, isto é, há pouco mais de 40 anos, aconteceu a chamada “revolução sexual”, William Reich, que cunhou essa expressão e foi um dos que mais escreveram sobre ela, dizia que na relação sexual humana há dois componentes essenciais: a igualdade – para um não ficar “dependente” do outro, e ... a ternura.
Atualmente, os que continuam a estudar o tema ( há na PUC-RJ, por ex., o Centro de Estudos da Masculinidade, dirigido pelo psicólogo Sócrates Nolasco) mostram que a educação, às vezes, é injusta para com o homem, não só por causa da frase tão repetida “homem não chora”, mas por algo que vai muito mais longe e mais fundo: exige-se do homem que ele seja sempre forte, ativo, agressivo, dominador, um “domador”, para ser o “chefe” no trabalho e o “cabeça” do casal, detendo em mãos o poder e o controle sem as fragilidades, a insegurança, o medo de todo e qualquer ser humano.
Com isso, os homens vão se reprimindo, não vão conseguindo falar de sua intimidade, falar de si, dizer o que sentem, tendo dificuldade em mostrar seu afeto em palavras e gestos, porque “isso é coisa de mulher”. E pensam que o homem não sofre com isso? Sofre. Ter afetos, sentimentos, emoções e ter que calar, faz sofrer.
Ter sensibilidade, e não saber ou não poder mostrar, porque “isso não é coisa de homem”, faz sofrer. Estar se sentindo, às vezes, frágil, cansado, inseguro, com vontade de pôr a cabeça em um colo e ter dedos passando devagar entre seus cabelos... mas não ter coragem de ir pedir ou buscar isso, é triste. Condenado ao trabalho e ao “desempenho” sexual, trancado dentro dessa “armadura” que é o modelo de homem que a cultura e a educação lhe impuseram, o homem, às vezes, se sente muito solitário. ( Esses comentários iriam ser desdobrados e longamente debatidos nos três dias da Oficina/ Seminário). E acrescentei: por isso a nossa pergunta aqui é: será que isso mudou? E, se mudou, mudou como? E por quê? É isso que nós vamos tentar ver, com a ajuda da Música Popular Brasileira.
Mas, o que me impressionou, e que faço questão de aqui registrar como significativo, foi o que ocorreu quando, ao final dessa primeira etapa do trabalho, já estavam todos saindo e se aproximou de mim um dos homens, de uns 50 e muitos anos:
- Posso falar contigo?
- Claro.
- Eu sou de...( e deu o nome da cidade do interior do RS, de onde vinha). Eu queria...eu queria te pedir um favor...É que...é que eu queria que tu escrevesses uma carta para minha mulher...
- Uma carta para sua mulher...? Pra quê?
- É que...eu queria que tu dissesses para ela tudo que tu disseste....aquela coisa da educação do homem...É que... ela diz que eu sou frio, que eu sou duro... ela acha que eu não tenho sentimentos... que eu não gosto dela porque eu não faço essa coisa de ficar de mãozinha dada... e de fazer agradinhos ...e botar a mão no ombro...Não é do meu feitio...Eu ia me sentir ridículo se fizesse... Mas isso...isso às vezes complica as coisas entre nós...
Olhei aqueles cabelos grisalhos, aqueles olhos ansiosos dentro de um rosto que não movia um músculo, e cuja comoção eu apenas conseguia adivinhar nas pausas e silêncios de sua fala, ora contida, ora em jorro súbito em que a expressão de afeto nem se permitia ser dita e até os adjetivos ficavam em suspenso:
- Eu tenho um filho de 17 anos. Agora ele passou em 1º lugar na Faculdade. Eu tenho um orgulho danado dele. Quando eu soube do 1º lugar, eu fiquei...! Tive vontade de dar um abraço, um abraço forte nele, mas... mas eu não consigo... ainda mais um homem abraçando outro homem... é... é esquisito, sei lá...Eu não consigo... Não consegui dizer nada, só falei “Meus parabéns!” e vi que ele ficou me olhando, desapontado....
- Sua mulher deve gostar muito de você, para não querer ver você reprimido e também não se sentir insegura, sem ter certeza do seu afeto. Então eu lhe daria uma outra sugestão: você contar a ela o que foi debatido aqui e mais tudo o que acabou de me dizer. ( Quem sabe projetada em minha imagem, a fala dele talvez pudesse “se soltar”?). Se comoveu a mim ouvi-lo, pra ela, então, vai ser muito mais importante ouvir de você tudo isso. E, quem sabe, a partir daí e de tudo mais que ainda vamos conversar aqui, vocês possam conseguir também falar de tudo isso? Olha, no final eu posso lhe dar as fitas com as músicas... pra vocês ouvirem juntos, quem sabe?
Ele saiu e eu fiquei pensando que não só as mulheres, mas também os homens, pagaram e ainda pagam um preço alto para se afirmarem dentro dos modelos e papéis de homem e de mulher que lhes são impostos em nossa sociedade. É isso que nós tínhamos que tentar ver.
O que nós realmente viríamos a fazer, levantando juntos, com a colaboração espontânea e extremamente válida e rica de todo o grupo, um roteiro musical desenhando a trajetória da relação homem-mulher e mostrando, através de nossos maiores compositores populares, as mudanças que foram ocorrendo nas relações sociais, de uma sociedade patriarcal, vertical e autoritária, baseada na dominação, no controle e na posse – na qual a exclusão é não só econômica como política, reduzindo a Mulher ao silêncio e espera das Penélopes - à atual busca de igualdade, de solidariedade, de companheirismo que definem o empenho dos que estão lutando por uma sociedade mais aberta e humana.
“Costurei”, em breves comentários, o que tinha sido discutido em grupo, daí resultando um show musical que foi apresentado na plenária final do Encontro, com o próprio grupo cantando e falando, com excelente receptividade. O show viria a ser repetido aqui no RJ, no ano seguinte, na Sala Itália do Istituto Italiano di Cultura, com dois cantores / atores e uma Atriz / Apresentadora, por ocasião do Dia Internacional de Mulher. E a seguir, a convite de Carlito Ferreyra, levado em temporada no Café-Teatro Arena, RJ."

Quer conhecer Maria Helena melhor?

http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=personalidades_biografia&cd_verbete=5923

e/ou

http://mhelenakuhner.wordpress.com/

Além dos textos maravilhosos dela sobre teatro, os excelentes livros dela voltados para a questão de Gênero eu cito no meu, que espero você esteja lendo também. BOM PROVEITO!

Imagem: Ela, claro!

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