quinta-feira, 10 de julho de 2008

DESENCANTAMENTOS

Ficar “mais velho” traz muitas vantagens, pouco alardeadas.

A maior delas, certamente, é a possibilidade de exercitar a serenidade diante da multiplicação dos “DESENCANTAMENTOS”.

Esse plausível processo de “faxinar” aspectos “mágicos” de SI mesmo, do OUTRO, do MUNDO e da VIDA ("mágicos" em sua pior face, a “infantilóide” - claro!) pode permitir - inclusive - o aprendizado de como “tirar partido” dessas transformações, ou desse gradual processo de perda, sem que seja necessário fazer “jogo-do-contente” pollyanesco algum...

Pode ser apenas um gradual “si-mancol” de que não se tem “poderes mágicos” que TUDO transformem, ou que revertam QUAISQUER situações.

Ah, que alívio parece dar esse deixar-de-ser uma espécie de deus-de-quinta-categoria, totalmente sem maiúsculas, e poder exercer uma realista nobreza de ser” apenas” (limitada, provisória e tragicamente) HUMANO...

FALAR e AGIR, sim; esse dueto é possível.

“Segredos-que-pretendem-tudo-resolver-magicamente” ficam ridiculamente mixurucas perto dos estimulantes Mistérios que se esgueiram à nossa frente; à frente de cada segundo ainda não vivido que nos desafia.

Cada um que faça sua opção.

A minha é o que chamo de SACRALIDADE LAICA.

Espírito, sim. Religiões não, a não ser pela beleza com que cada uma pode contribuir para a reflexão autônoma, e jamais obediente; não pela fé exigida por elas; o exercício da ética já é um suficientemente belo exercício. E desde quando eu deveria precisar de deuses para ter “simancol” de exercitar a ética e a alteridade?...

O primeiro professor de filosofia que tive na vida, o grande Carlos Eduardo Guimarães (para nós, ex-meninas do Notre-Dame-entra-burra-sai-madame de Ipanema, Rio de Janeiro, o eterno Mestre “Cadu”) ainda trilha minha vida, “graças aos bons deuses” (não podia perder a piada). Ganhei dele o livro “O ESPÍRITO DO ATEÍSMO” de André Comte-Sponvile, Editora Martins Fontes, cuja leitura “me deu a absolvição” sobre várias coisas que já pensava e sentia. Recomendo a todos sua (urgente) leitura.

Diz ele no início do livro:

“...Tenho horror ao obscurantismo, ao fanatismo, à superstição. Também não gosto do niilismo nem da apatia. A espiritualidade é importante demais para que a abandonemos aos fundamentalistas. A tolerância, um bem precioso demais para que o confundamos com a indiferença ou a frouxidão. Nada poderia ser pior do que nos deixarmos encerrar num face-a-face mortífero entre o fanatismo de uns - seja qual for a religião que adotem - e o niilismo dos outros. É melhor combater todos eles, sem confundi-los e sem cair em seus respectivos “defeitos”. A laicidade é o nome dessa luta. Resta, para os ateus, inventar a espiritualidade que a acompanha. ...” (pág.10).

Vejo por exemplo, com facilidade, nos tais “outros niilistas” citados por ele, muitos membros de grupelhos políticos, muitos representantes da face mais corrupta possível do Mercado, e seus “personal-talibãs”: os autores dos detestáveis manuais de suposta impecabilidade, visando suposto mágico “sucesso-na-vida”.

Diz ele ao finalizar o livro:

“...O amor, e não a esperança, é o que faz viver; a verdade, não a fé, é que liberta. Já estamos no Reino: a eternidade é agora.”(pág. 190).

Evidentemente suponho que nem seria necessário “explicar” do quê Sponville está falando quando usa o termo “VERDADE”, acima: a “palavra”, a “fala” liberta; logo, ele se refere a uma singularidade verbalizada, expressada, com “autenticidade”, com “espontaneidade” (por mais curiosos que esses conceitos possam parecer hoje em dia).

Há um querido colega, de quem também tive o prazer e a honra de ser aluna, o psicanalista Luís Cesar Hebraico, que daria “explicações” tão boas para isso, que faço questão de citá-lo, usando um trecho de seu delicioso e revolucionário livro “A NOVA CONVERSA”, da Ediouro (que também recomendo!).

Ali, ele reaviva a realidade e o valor dessa liberdade oferecida pela palavra, pela fala, pela comunicação na qual alguém VERDADEIRAMENTE FALE, e alguém demonstre que VERDADEIRAMENTE OUVIU, podendo - inclusive VERDADEIRAMENTE RESPONDER, e assim por diante:

“...Satisfazer o Desejo de Palavra não é só enviar uma mensagem verbalmente formulada, mas, após tê-lo feito, reconhecer indicadores - os Sinais de Acolhimento(SAs) - de que essa mensagem foi, de fato, acatada. Desejo de Palavra, portanto, é um desejo de “co-ciência”: um desejo de compartilhar a ciência que se tem de alguma coisa. ...” (pág. 66)... “A consciência é um saber duplo, o acréscimo de um saber verbal a um saber pré-verbal. ...” (pág.69).

Hannah Arendt também fazia o elogio desencantado do dueto FALA - AÇÃO, desprezando a “mágica”. Em uma das minhas “laicas bíblias”, “A CONDIÇÃO HUMANA”, Editora Forense Universitária, ela lembra:

“...Ao contrário da fabricação, a ação jamais é possível no isolamento. Estar isolado é estar privado da capacidade de agir. A ação e o discurso necessitam tanto de circunvizinhança de outros quanto a fabricação necessita da circunvizinhança da natureza, da qual obtém matéria-prima, e do mundo, onde coloca o produto acabado. A fabricação é circundada pelo mundo e está em permanente contato com ele; a ação e o discurso são circundados pela teia de atos e palavras de outros homens, e estão em permanente contato com ela. ...”(pág.201).

Mesmo a solitude reflexiva do mais “arisco” filósofo, ou a solitude criativa do mais mau-humorado poeta vão precisar, num momento seguinte, do contato respeitoso assinalado por Hannah; tanto quanto dependeram, no momento anterior, do respeitado (e transitório) aparente isolamento: o que não deixa de ser um “respeitoso diálogo”.

Todos nós passamos pelos desencantamentos íntimos:

- pessoas ainda queridas que se afastam;

- pessoas queridas que não nos são leais (ou mesmo nos traem);

- pessoas queridas que parecem não compreender nossas singularidades;

- outras não tão bem dotadas de sensibilidade sentimental quanto gostaríamos;

- os “destalentados” de escuta;

- pessoas próximas e queridas que adoecem;

- e até as que (provavelmente muito à contragosto) falecem, testando nossa fortaleza diante da perda, e evidenciando nosso próprio destino trágico, que recordamos ao adormecer, que fantasiamos poeticamente ao sonhar, e que sobre o qual tentamos nos iludir ao “esquecê-lo” a cada espreguiçamento matinal.

Passamos também pelos desencantamentos já públicos, mas ainda próximos:

- sermos submetidos aos obstáculos relacionados a qualquer espécie de conquista social que dependam do porte econômico do “berço” do qual se emerge, desde os referentes às possibilidades (ou não) de inclusão na própria sobrevivência propriamente dita, na saúde atendida, na educação e na cultura;

- sermos submetidos às consequências do que foi dito acima nas possibilidades (ou não) de algum futuro existencial/profissional, ou às consequências referentes às possibilidades de inclusão (ou não) em tais ou quais grupos sociais que pretendamos freqüentar por quaisquer motivos de nosso foro íntimo;

- idem-idem (AINDA! EM PLENO 2008!) aos obstáculos frequentemente relacionados às questões de etnias, religiosidades, naturalidades, nacionalidades, preferências culturais, e até orientações sexuais;

- ou mesmo aos patéticos obstáculos que podem surgir (“embarreirando” a possibilidade de contribuirmos para o caminhar da humanidade) devido a algum perfil singular, que rejeite com as tais “autenticidade” ou “espontaneidade” a mera obediência a “padrões” ditados por “manuais”de comportamento ou minúcias de aparência ditados pelo Mercado vigente; (em tempo: que "deuses" esvaziaram sem avisar os conceitos de autenticidade e espontaneidade?...);

- ou mesmo aos (patéticos - neste caso - ainda seria um elogio!) obstáculos decorrentes de uma eventual ausência desse “buraco negro” sugador de talentos que nos habituamos a chamar de “QI” ("Quem Indica"?), entre tantas patologias sociais do gênero.

Há ainda os desencantamentos públicos e aparentemente distantes (aparentemente, pois ora nos incluem, ora nos excluem, o que ainda é uma maneira perversa de nos “incluir” (nos “incluir” , por exemplo, como “pária” ou semelhante...):

- ideais de infância absorvidos na cultura familiar que não resistem ao “andar da carruagem” da História/Cultura, ao longo do tempo;

- ideais, sonhos de juventude, ideologias que não resistem aos desmandos corruptos de antigos (ex) heróis (a não ser que prefiramos nos manter como "surdos-cegos" por conveniente e covarde auto-ilusão, ou sejamos, por algum motivo, cúmplices), ao longo do “andar da carruagem” da história; e que não resistem, igualmente, às “notícias dos jornais” (estas muitas vezes tão duvidosas quanto os ex-heróis);

- ideais, sonhos de infância e juventude, que nos convenciam que existiam (e bastava distinguir!) “pessoas-quase-santas” de um lado, e "pessoas-quase-demônios” de outro (e que o Mundo, a Vida e o Viver eram simples assim) vão quebrando, como cristais que se esfacelam com os sopros e as ventanias da passagem do tempo; afinal, nós mesmos começamos NOS idealizando, e é com olhos “idealizadores-de-plantão” que vamos espiando tudo e todos;

- etc., etc., etc...

O que nos resta? Escolher, no mínimo, entre:

- continuar nos iludindo com a “mágica“ das idealizações infanto-juvenis; continuar nos iludindo com a “mágica” dos criminosos "manuais-de-suposta- impecabilidade-de-rituais-obedientes”; continuar esperando a “mágica” de fazer contato com um OUTRO-de-mentirinha, o que significa que ainda somos "alguém-de-mentirinha" também (contato mais improvável que os Contatos Imediatos de Terceiro Grau, inclusive porque ESTES são plausíveis!); continuar esperando a “mágica” que os líderes religiosos prometem; continuar esperando a “mágica” que os grupelhos políticos prometem; continuar esperando a “mágica” da “satisfação imediata” que o Mercado promete (bastaria consumir!); ou mesmo continuar esperando a “mágica” suicida-assassina de algum "Armagedom" prometido pelos abomináveis pessimistas-de-plantão (idealizar o Mal ainda é idealizar, afinal...).

Isso nos manteria (divinamente) entretidos numa onipotente brincadeira de parar-o-tempo, o que por outro lado nos manteria "infantiloidemente" auto-idealizados e idealizadores ad nauseam, à espera de uma suposta eternidade supostamente redentora...

OU:

- Faxinar a auto-avaliação idealizada ("mágica") que temos de nós, o que permitiria faxinar o olhar idealizado ("mágico") sobre nosso entorno (humano ou não), deflagrando, com a MATURIDADE um exercício de senso crítico cada vez mais afiado (sobre nós, sobre o Outro, sobre o Mundo, sobre a Vida e sobre o Viver), o que pode não ser nem um pouco “gostoso” o tempo todo, o que pode não trazer “satisfação ou realização imediata”, mas que traz no mínimo a LUZ de estimulantes questões em busca de estimulante saber (que traga novas questões) mantendo nossos ESPÍRITOS VIVOS; e um ENORME ALÍVIO embutido.

O alívio de sabermos que não somos deuses (poderosos, pouco piedosos e frequentemente tiranos).
O alívio de sabermos que estamos AUTÔNOMA, RESPEITOSA E RESPONSAVELMENTE DESENVOLVENDO NOSSAS HUMANIDADES, e que isso já é suficientemente grande, "sagrado" e nobre.

Ilustração : MARK ROTHKO - Sacrifício de Ifigênia - 1942.

Um comentário:

O Fantasma de Chet Baker disse...

Que blog bárbaro! Eu queria ter um igual, buá buá buá buá. Que lucidez, que precisão de pensamento.Ter uma amiga assim é de deixar-me prosa!