terça-feira, 4 de agosto de 2015


FILICÍDIOS DO DIA A DIA DANDO (merecidos?) TAPAS NA NOSSA CARA:


Nascer com sexo masculino é nascer em grupo de risco?...

Se pesquisarmos indicadores referentes a vários aspectos do dia à dia (econômicos, políticos, criminais, comportamentais, referentes à saúde, referentes à educação, referentes ao trânsito urbano, referentes a libererdade quanto sexualidade/gênero ou família, etc.), e começarmos a selecionar o perfil especificamente masculino que emerge destes dados, o desenho que aparece (como veremos) será no mínimo assustador...
Experimente e verá: índices do IBGE, de ONGs ligadas aos temas infanto-juvenis, da UNESCO, da ONU, FAO, etc...
É assustador particularmente para quem tem (e ama os seus) filhos e netos do sexo masculino.
Aliás, o único desenho mais assustador do que resulta do olhar dedicado ao perfil masculino é o referente às crianças em geral...
FILICÍDIO: A MAIS HORRENDA FACE DO CALDO CULTURAL PATRIARCALISTA-PATRIMONIALISTA.
Daí a pergunta do subtítulo.

Mas para quem optou tão claramente por mais levantar questões que respondê-las (minha preferência), já é bastante satisfatório assumir o papel de provocadora.

Enquanto o “Novo Dicionário Aurélio” da Editora Nova Fronteira em 1986, p. 778, define Filicídio apenas realisticamente...: ...”(De fili + cídio) S.m.; Ato de matar o próprio filho (Sin. , desus.: gnaticídio)”... , o específico “Vocabulário da Psicanálise”, de Laplanche, J. e Pontalis, J. - B., dos Editores Moraes, já em sua 4a. Edição de 1977, espanta.
Não só “esquece” de incluir lá o conceito (mesmo neste seu significado óbvio), como parece “ignorar” o uso que - desde o início dos anos 60 - os psicanalistas ingleses (o grupo da Clínica Tavistok) e os argentinos (inclusive um numeroso grupo da Sociedade Psicanalítica de Buenos Aires refugiado no Brasil por motivos políticos por um bom período), vinham fazendo desta terminologia, não mais em seu significado literal e óbvio, mas como metáfora de desejo de realização do fato, fantasiosa ou não.
Alguns profissionais, por exemplo: Arnaldo Rascoviski (1962 e 1973), R. Bohoslawiski (1967), M.Knobel (1967, 1975 e 1976) , Arminda Aberastury (1975 e 1976), na Argentina, em sincronia com os ingleses, foram acompanhados em coro por vários colegas de todo o mundo, inclusive alguns com abordagens já paralelas e diferentes das suas - como os junguianos Guy Corneau (1990, 1995) no Canadá, e Walter Boechat, (1997) no Brasil, (por exemplo).

Todos passam a adotar Filicídio psicossociologicamente, enquanto Arnaldo Rascovski (um teórico pós-moderno avant la lettre ?) clama pela responsabilidade de todos pela recorrência do fenômeno, proclamando a todos como atores ativos ou passivos do crime. Sua proposta de responsabilização Hannah Arendt (se o tivesse lido) certamente aplaudiria, aprovaria.
Além de seus textos sobre as questões da Banalidade do Mal e da Responsabilidade, a releitura De Hannah Arendt do tema ‘Natalidade’ emergiu com clareza após ela ter tido uma espécie de “epifania” em Paris, enquanto assistia um concerto sobre J S Bach, “Jesus alegria dos homens”.
Ela saiu dali aos prantos, correu para um telefone, e disse ao marido:
- “Descobri porque nós não precisamos ter filhos! Somos pais de todas as crianças do mundo! Todo mundo é responsável por todas as crianças do mundo!...”

Filicídio passou a significar um movimento, a princípio inconsciente, que abrangeria todos os pensamentos, sentimentos e atos de sujeitos individuais ou coletivos, construídos em micro ou macro universos, que viessem consequentemente a prejudicar de alguma maneira a sobrevivência física, intelectual ou emocional dos “descendentes da humanidade” , dos descendentes de quem quer que fosse, colocando em pé de igualdade um responsável negligente na intimidade, e um político clara ou dissimuladamente bélico ou genocida no mundo público...

A título de curiosidade, aponto que tive o prazer de testemunhar o “lançamento brasileiro” da terminologia, na Semana de Psicanálise de 1972, que ajudei a organizar no Colégio Notre Dame do Rio de Janeiro, e o desenvolvimento de seu debate nos Congressos sobre Psicologia da Infância e da Adolescência promovidos pela APPIA - Associação de Psicologia e Psiquiatria da Infância e da Adolescência (onde fui Secretária por alguns anos), por quase duas décadas, período em que muitos profissionais da área de Humanas propuseram e comungaram uma moderna postura interdisciplinar na abordagem de indivíduos ou grupos, desenvolvendo em conseqüência o trânsito de seu pensamento entre o “micro” universo da intimidade (subjetiva, familiar, etc.), e o “macro” (o grupo social, por trabalho, religião, cidadania, preocupação planetária, etc.).

Estes eventos caracterizados pela permeabilidade de informações, coincidiam paradoxalmente com momentos-ciclos (patriarcalistas-patrimonialistas?) de política conservadora e repressiva, e - sintomaticamente - os profissionais dedicados às questões inconscientes não só se voltaram especialmente aos descendentes, mas chegaram a renovar a amplitude de seu olhar sobre eles, sobre a relação cotidiana dos chamados “adultos” ou “autoridades” com estes descendentes, tanto no “micro” como no “macro” universo de suas vidas, exatamente num momento em que muitas destas “autoridades” tinham se tornado especialmente violentas frente quaisquer “desobediências” (mesmo que de outros adultos, ‘bien sûr’) no “macro” universo brasileiro e latino.

Walter Boechat, numa palestra que promovi em 1995, na UERJ, (texto aguardando publicação pela própria Universidade até hoje), renova o mito edipiano lembrando o quão freqüentemente é esquecido que “Édipo Rei”, antes de ser uma história de parricídio, é uma história de filicídio.
O pânico diante da possibilidade de destronamento anunciado pelo oráculo, leva Laio a expor seu filho à morte, o que só não acontece devido à piedade de seu servo pelo bebê, e ao implacável destino, que o coloca nos braços de pais adotivos.
Laio - sim - fá-lo conscientemente.
Já Édipo, colocado numa fatídica estrada, novamente pelo destino, quando mata Laio, não sabe que está matando o próprio pai; seu movimento é “involuntário”, numa oportuna metáfora das motivações inconscientes.

Para que renovemos e atualizemos a cena do reencontro de Laio e Édipo na estrada, de seu confronto competitivo pelo poder de espaço de trânsito na estrada, e suas trágicas conseqüências, podemos imaginar o encontro de bombardeios sobre civis e suas crianças mortas, gravemente feridas, abusadas, tornadas órfãs, e tendo seus “destinos”(?) existenciais, intelectuais, emocionais, prejudicados.
Se Ali, um menino afegão que perdeu além de tudo os dois braços, se tornando conhecido internacionalmente, ao invés de ameaçar suicidar-se aos doze anos, ameaçasse furar os próprios olhos, teríamos a cena completa revivida na realidade do século XX...

Podemos também - com facilidade - imaginar uma cena brasileira já “banalizada” por essa maioria que, baseada em sentimentos idiossincráticos e infantiloidemente imediatistas, aceita (e aplaude!) infelizmente a redução da maioridade penal...

Quantas vezes as conseqüências trágicas se repetem metaforicamente, da mesma forma que a “exposição à morte” do “filho” pelo “Pai”, o distanciamento, o afastamento por algum tempo, o que impede que “o filho” reconheça o “Pai” no momento do reencontro, a disputa de poder, o “assassinato” (às vezes sem aspas) do “Pai” , que, na verdade, foi o primeiro a tomar a iniciativa tanática com relação ao “filho”?
O ponto que se torna aí especialmente discutível é o do teor de real interferência do “destino”...
“Destino” é “suportável”, mas RESPONSABILIZAÇÃO seria para os “fortes” (por dentro)?...

IMAGEM, cartaz de uma ONG católica.


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